Confiança encolhida
Sempre que o país formal se distancia do Brasil real, quem acredita e procura residir no primeiro adquire cidadania num país que não existe.
Tanto especialistas como cidadãos comuns dão notícia e testemunho de que o cidadão brasileiro, principalmente nas cidades grandes, vive sob intenso cerco e brutal ataque da violência — tanto a instintiva e cega, como a deliberada e fria. É importante verificar se essa situação tem reflexo adequado e realista nos tribunais.
Como mostrou outro dia bem documentada reportagem de Chico Otavio no GLOBO, o número de crimes aumenta no Rio sem parar, mas a cada dia mais encolhe o de processos criminais na Justiça. E é pequena — assustadoramente pequena, porque bate de frente com a realidade das ruas — a quantidade dos que resultam em condenação.
(Não precisamos tratar disso a fundo hoje, mas é bom não esquecer que, mesmo com condenação e cumprimento de pena, criminosos profissionais — mesmo os muito jovens — muito raramente saem da cadeia transformados em cidadãos honestos e pacatos. O mais comum é aproveitarem a prisão para fazerem Ph.D. em banditismo.) Especialistas concordam que o sistema é ruim, independentemente da qualidade profissional de juízes, promotores e policiais. Quando, por exemplo, o réu está preso, o prazo para a investigação da polícia e a decisão do juiz é curto demais.
Com pouco tempo para investigar, o trabalho da polícia, cujo aparato técnico é reconhecidamente muito limitado, perde qualidade e eficácia. Já quando o acusado está em liberdade, o inquérito não acaba nunca.
A quantidade de falhas e problemas não sugere — ainda — que tenha chegado a hora de o Estado e a sociedade partirem para a concepção de um novo sistema, ou quase isso.
Antes dessa etapa, há espaço para reformas e mudanças setoriais na área penal. Por exemplo, a remoção das normas que privilegiam o acusado endinheirado.
Não é reivindicação demagógica. Não vamos esquecer que o traficante malvado e de origem humilde tem hoje em dia tanto dinheiro e poder quanto o banqueiro ladrão e o profissional liberal assassino. Ou muito mais.
Ainda na área dos privilégios hoje oferecidos à turma do alto da pirâmide, é notável a presença de atestados fornecidos por médicos particulares.
Sem ofender a classe: alguém acredita que o doutor amigo da família consegue ser isento quando decide se o patriarca tem ou não saúde para encarar o aborrecimento de um depoimento ou a humilhação de uns dias em cana? A reforma profunda do sistema penal certamente é necessária. A reportagem de Chico Otavio mostrao claramente. Infelizmente, não é mudança que se opere rapidamente. Mas muitos vícios com odor de privilégio social podem ser varridos sem dor, alguma rapidez e bastante proveito.
Não é questão secundária: tem tudo a ver com o crescimento da confiança dos habitantes do Brasil real na Justiça do país. Como as coisas estão hoje em dia ela tem encolhido sem parar.