sábado, junho 30, 2007

Desesperadas em série

Como funciona a fábrica de adaptações
latinas de Desperate Housewives que
a Disney montou na Argentina


Marcelo Marthe, de Buenos Aires

Montagem sobre fotos de Marcelo Kura e Divulgação

PRODUÇÃO EM ESCALA
Estrelas do original americano (acima) e suas contrapartes nas versões latinas: como numa linha de montagem, todas as cópias foram feitas com o mesmo cenário, figurino, equipe técnica...

Na manhã de terça-feira passada, o termômetro registrava 3 graus centígrados em Pilar, a 50 quilômetros de Buenos Aires. O frio contrastava com as roupas mínimas usadas pelo elenco que participava da gravação, ao ar livre, de um seriado para a televisão brasileira. De camiseta e bermuda, os atores tremiam e, ainda por cima, eram policiados para não lançar vapor ao respirar, pois isso trairia que o cenário está bem longe dos trópicos, onde a ficção se passa. Pilar foi escolhida pela Disney para abrigar uma linha de produção inusitada. Ali estão sendo feitas quatro versões para o mercado latino de Desperate Housewives, uma das séries americanas de maior sucesso na atualidade. As aventuras de cinco mulheres que vivem num subúrbio abastado, onde muita podridão se esconde sob a superfície, ganharam recentemente um similar argentino e outro colombo-equatoriano. Em breve será gravado um terceiro genérico, voltado à população latina dos Estados Unidos. Todos têm o mesmo nome em espanhol: Amas de Casa Desesperadas. No momento, porém, trabalha-se ali na versão que deverá estrear no Brasil em agosto, na RedeTV!. VEJA acompanhou as gravações e constatou que a expressão "enlatado", nesse caso, faz todo o sentido. Assim como as outras emissoras latinas envolvidas no projeto, a RedeTV! entra apenas com a adaptação do roteiro para o português, o time principal de atores e uma parcela dos custos de produção, 5 milhões de dólares. A Disney arca com o grosso da logística, mas lucra com o pagamento de direitos autorais e acordos publicitários.

O mercado de compra e venda de formatos de programas é antigo e agitado. Reality shows como o Big Brother são adquiridos de produtoras estrangeiras e adaptados ao gosto brasileiro. Na dramaturgia, a rede mexicana Televisa mantém há tempos um acordo com o SBT de Silvio Santos para que se façam versões locais de seus melodramas. A empreitada da Disney abre um novo capítulo nessa história. A adaptação de um seriado americano, mantidos os padrões técnicos da televisão daquele país, sempre foi proibitiva por causa dos custos. O orçamento de uma temporada de Desperate Housewives, por exemplo, bate nos 25 milhões de dólares. Para que uma emissora como a Rede TV!, com experiência zero em dramaturgia, se lançasse numa aventura desse tipo, seriam necessários investimentos ainda mais altos – em equipamento, por exemplo. A solução imaginada pela Disney – criar uma linha de montagem e arrancar dela o máximo – permitiu diluir os custos. Da cidade cenográfica de 45.000 metros quadrados aos figurinos, da equipe técnica ao elenco de apoio, Donas de Casa Desesperadas compartilha tudo com as outras cópias de Desperate Housewives. Tão logo a versão brasileira se encerre, dentro de algumas semanas, terão início os trabalhos da rede Univision, voltada ao público latino dos Estados Unidos. Em seguida, virá a segunda temporada do clone argentino. E assim por diante.

Donas de Casa Desesperadas demorou um ano além do previsto para sair do papel porque a RedeTV! teve dificuldade para fechar o elenco. "Ter nomes conhecidos era um ponto essencial", diz Mônica Pimentel, diretora artística da emissora. Sonia Braga só assinou contrato uma semana antes do início das gravações. Apesar de ter uma participação menor do que a da colega Lucélia Santos, Sonia está embolsando o maior cachê: cerca de 1 milhão de reais pela temporada. A Disney não viu problema de as protagonistas não viverem exatamente o auge de suas carreiras. "Elas podem não estar no topo, mas são dignas", diz Leonardo Aranguibel, produtor executivo da companhia. E conclui: "As americanas também não estavam no pico antes do seriado".

Assistir às diversas versões de Desperate Housewives é uma experiência curiosa. Como em qualquer linha de montagem, os produtos saem da fábrica iguaizinhos. Cada capítulo segue seu correspondente americano diálogo por diálogo. As marcações de cena, a filmagem em alta definição, a trilha sonora – cada detalhe é padronizado de tal maneira que não sobra espaço para atores ou diretores imprimirem um tom pessoal à interpretação. O cineasta Fábio Barreto (de O Quatrilho) responde pela direção da série abrasileirada. Na prática, porém, é monitorado o tempo todo por um profissional argentino que zela para que a cartilha da Disney seja cumprida. As pequenas modificações realizadas no roteiro, em nome da cor local, não denotam grande uso de imaginação. Um clube de strip-tease da trama original foi substituído – surpresa! – por um show de mulatas no Brasil.

O fato de as gravações ocorrerem num país que fala outra língua terá reflexos na versão brasileira. Na última terça, um "duelo" de interpretação entre Teresa Seiblitz (que tem o papel da executiva Lígia, que larga a carreira para cuidar de três filhos endiabrados) e uma veterana atriz argentina evidenciou as trombadas lingüísticas a que uma produção nesse esquema está sujeita. Lucrécia Campello, a atriz em questão, não conseguia guardar (ou falar) seu texto em português nem entender o que Teresa dizia. Preencher o elenco secundário com atores argentinos é mais uma estratégia para conter as despesas. Suas falas, naturalmente, terão de ser dubladas. "Mas não vai ficar horrível como nas novelas mexicanas do SBT", garante Barreto.

Por mais frugal que possa parecer à distância, a questão do frio também tem seu peso. Quando VEJA visitou o set, o ator Iran Malfitano, que faz as vezes do amante da ex-modelo Gabriela (a atriz Eva Longoria no original), reclamava por atuar de bermuda e camiseta sob uma temperatura congelante. "Isso afeta minha concentração", disse. Franciely Freduzeski, que representa Gabriela, circulava com uma bolsa de água quente por causa de uma tendinite no braço, também provocada pelo frio. Lucélia Santos, que interpreta a mãe separada vivida na série americana por Teri Hatcher, teve de fazer uma cena pelada. Teresa Seiblitz, por sua vez, foi obrigada a lançar-se numa piscina. "A gente devia mudar o nome disso aqui para 'A Marcha dos Pingüins'.", diz ela.