sábado, junho 30, 2007

A batalha do Complexo do Alemão

A guerra necessária para
a reconstrução do Rio

O Rio de Janeiro começa a virar o jogo na maior
operação de combate ao tráfico já realizada no país


Ronaldo França e Marcelo Bortoloti

Bruno Domingos/Reuters
Policiais carregam um corpo após o confronto: invasão da fortaleza do tráfico resultou em dezenove mortes


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A Serra da Misericórdia, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é um conjunto de morros de até 180 metros de altitude e não mais do que 4 quilômetros de extensão. É mais conhecida por elevar na paisagem da cidade o Santuário da Penha, que se vê ao longe no trajeto entre o Aeroporto do Galeão e o centro da cidade. Mas os olhares de todo o país têm convergido para ali por outra razão. Conquistar definitivamente suas colinas é o objetivo tático das tropas fluminenses que travam, neste momento, a mais prolongada guerra contra os traficantes cariocas de que se tem notícia. A serra é o ponto mais alto do Complexo do Alemão, a região composta de dezoito favelas que se tornou a cidadela do tráfico e o ponto nevrálgico na luta para resgatar áreas inteiras da cidade que seguem sob o domínio de bandidos. Na quarta-feira da semana passada, depois de 57 dias do início do confronto, o governo do estado empreendeu sua ação mais eficaz. Com um efetivo de 1 350 homens, conseguiu avançar meros 3 quilômetros, contados a partir da entrada do complexo. Parece pouco, mas foi o suficiente para chegar aonde governos passados nem cogitaram estar. Ali fica o quartel-general dos líderes do tráfico local, não por acaso uma das quadrilhas mais cruéis da cidade. A batalha, a mais bem-sucedida até agora, teve um mérito adicional: o de mostrar, enfim, como se deve tratar a questão da criminalidade, que se espalha por todas as grandes cidades do país. Enfrentar os bandidos, dominar o território e restabelecer o poder do estado é o caminho. Os últimos governos fluminenses patinavam na inação ou em ações paliativas. O resultado foi o fortalecimento da bandidagem, uma perigosa desmoralização do estado formal. Agora a coisa mudou.

O rigor na operação policial era indispensável, como demonstram as seis barreiras retiradas pela polícia na semana passada, em uma única rua. Barreiras que incluíam um caminhão frigorífico tombado e barras de trilho de trem fincadas no chão. Fora dezenas de outros obstáculos em ruas menores. Apesar de todo o esforço e das oito horas de confronto, a polícia ainda não conseguiu chegar ao objetivo: prender os líderes do tráfico local e estabelecer uma ocupação permanente, sem a qual qualquer batalha terá sido em vão. Isso dá a dimensão da dificuldade do combate. O Complexo do Alemão é a região mais bem armada entre todas as que estão sob o domínio de traficantes. Seu arsenal de fogo é maior que o de qualquer outro morro do Rio. E o problema que traz à cidade não se resume ao tráfico. O clima de insegurança que o domínio dos traficantes impõe estimula a prática de uma série de outros crimes. Estima-se que a criminalidade no Alemão seja a razão de metade dos casos de violência e crimes registrados na Zona Norte da cidade. O número de bandidos é incerto. Pode chegar a 600. Mas não há menos do que 200 homens armados estabelecidos ali. O arsenal de que dispõem é estimado em 150 fuzis, metralhadoras capazes de derrubar aviões, granadas e uma incontável coleção de pistolas e revólveres. Há entre os bandidos alguns com formação militar. Por sua posição estratégica na cidade, o território é considerado fundamental pelos policiais na tarefa de eliminar as gangues armadas que dominam o tráfico na cidade.

Fabio Motta/AE
Sérgio Cabral: plano inédito de revitalização na região mais pobre do Rio

Ao final da batalha, algumas ONGs e entidades que se pretendem defensoras dos direitos civis se apressaram em classificar a operação como uma matança indiscriminada, por causa das dezenove mortes ocorridas. Foi possível ouvir também, embora bem mais longínquos do que de costume, os ecos do velho discurso de que invasões policiais não resolvem o problema. Há, de fato, que tomar um cuidado extremo para evitar as arbitrariedades e ações inconseqüentes numa área densamente povoada. Mas o que essa gente quer é passar a mão na cabeça de facínoras, sob a falsa premissa de que eles são bandidos porque nasceram pobres. Uma afirmação do secretário de Segurança Pública do Rio, o delegado federal José Mariano Beltrame, encerra o melhor raciocínio sobre o assunto: "Hoje morreram dezenove pessoas. Se esperássemos alguns anos, seriam muito mais. O remédio é mesmo amargo, mas necessário", disse.

O que diferencia a ação do atual governo fluminense da dos demais é a disposição de conjugar a ação enérgica com ações sociais efetivas – e não apenas aquelas que visam à colheita de votos em empobrecidos currais eleitorais. No mês passado, o governador Sérgio Cabral anunciou um plano que pode transformar a paisagem do lugar. O projeto terá verbas do governo federal, que pretende investir 2 bilhões de reais em obras de saneamento e habitação no estado do Rio de Janeiro. O principal projeto urbanístico no Complexo do Alemão (veja o quadro) é a construção de um teleférico, que vai transportar moradores da estação de trem mais próxima até o topo da favela. A idéia foi inspirada no teleférico de Medellín, na Colômbia, que hoje transporta 30.000 pessoas por dia numa região escarpada e miserável da cidade. O projeto prevê o transporte de número similar de pessoas. Seis estações serão construídas ao longo do complexo, para desembarque de passageiros. O plano do governo inclui a urbanização do entorno de cada estação, com a construção de unidades pré-hospitalares. Pelo menos quinze ruas serão reurbanizadas e ampliadas para larguras de 4 a 7 metros, permitindo o acesso de automóveis. Não é, nem de longe, tarefa fácil. A experiência de outros países mostra que não há solução isolada. Ações sociais serão sempre bem recebidas. Mas de nada adiantarão se o estado não for o dono do território.




Foto Antonio Scorza/AFP