O Brasil tem agora, com a Operação Furacão, a segunda oportunidade. A primeira foi o mensalão, que se perdeu. A operação Mãos Limpas, na Itália, foi assim: as investigações acabaram mostrando que a corrupção unia o mundo do crime a magistrados, procuradores, políticos, empresários. A grande limpeza acabou produzindo uma história emblemática nos processos anticorrupção.
A primeira chance recente de transformar uma história triste num processo de mudança da sociedade no Brasil foi o mensalão. Hoje há poucas esperanças de que os culpados sejam punidos.
O processo se arrasta no Supremo enquanto, na sexta-feira, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares era recepcionado na sala VIP da fábrica da Hyundai inaugurada em Goiás pelo presidente Lula. Delúbio é apenas a última fronteira, outros que estiveram na berlinda voltaram. A pior desfaçatez foi a do ex-deputado José Janene, com seus múltiplos atestados de doença crônica, alegando que ele estava impedido de enfrentar o julgamento dos seus pares, e que, agora, passado o susto, volta saudável e assume o posto de tesoureiro do PP.
Ninguém parece ter sido afetado pelo mensalão, exceto por alguns detalhes: a barba de Delúbio, o cabelo de Marcos Valério.
O ministro Tarso Genro disse que não ficaria surpreso se parlamentares fossem envolvidos na Operação Furacão. Quem se surpreenderia? Por ser ministro da Justiça, ele não deveria fazer suspense, mas dividir com a sociedade o que provavelmente já sabe.
Diante de um caso dessa proporção, em que, até sextafeira, o STF já havia determinado o bloqueio de dezenas de contas de envolvidos, pode-se ter duas reações: ou a sensação de desânimo com o país, pelo grau de corrupção, ou ver nisso uma chance. No caso, a nossa segunda chance em menos de dois anos.
É da natureza da corrupção ir contaminando tudo o que toca. Portanto não chega a ser surpresa que ela tenha agora ramificações no Poder Judiciário. O que espanta é a mesmíssima cara-de-pau de acusados, que repetem os mesmos expedientes para fugir da lei; lei que, ao escolherem a magistratura, juraram aplicar e defender em nome da sociedade.
O Brasil não é diferente dos outros países por ter casos de corrupção e pessoas da elite e dos poderes da República envolvidos neles.
Itália, Alemanha, Estados Unidos já enfrentaram redes de corrupção com amplas conexões. O Brasil é diferente por punir tão pouco e tão raramente. É diferente por achar que criminosos que têm curso superior devem ser tratados de forma diferenciada, em celas especiais. É diferente porque, quando os acusados são os letrados, a OAB se preocupa e vai ao ministro da Justiça reclamar de supostos direitos que estariam sendo negados. Mas nunca se vê a OAB se mobilizar em favor dos direitos cotidianamente mutilados dos sem-nome. O Brasil é diferente pela aceitação das desculpas que dão certos suspeitos; eles ofendem não apenas as leis, mas a inteligência alheia. A impunidade tem sido o maior incentivo à corrupção. Dessa certeza, saiu a frase “me pegar por corrupção, eles não vão me pegar nunca”, que teria sido dita pelo desembargador José Eduardo Carreira Alvim.
O que vai acontecer desta vez em que a Polícia Federal flagra uma rede envolvendo políticos, magistrados, desembargadores, policiais e bicheiros reunidos na operação de vendas de sentença? Pode acontecer nada. E aí o Brasil estará perdendo a segunda chance. Encerrando o prazo da prisão temporária, caso ela não se torne preventiva, os mais poderosos entre os acusados começariam a voltar para a casa e aí se armariam com expedientes jurídicos para defender seus direitos supostamente ameaçados.
Dentro de alguns meses, o Brasil veria todos eles de volta aos seus postos na magistratura ou no comando das escolas de samba. Se for assim, o país terá escolhido o caminho da perda dos valores, da hipocrisia, do deboche, do cinismo. E o Brasil estará correndo um grande risco.
Quantos escândalos impunes pode a sociedade brasileira ver sem perder a fé nas instituições? Os golpes dos últimos anos atingiram tão violentamente os cidadãos que hoje é comum ouvir de antigos otimistas a frase “pela primeira vez, estou achando que este país não vai dar certo”. Nas últimas duas semanas, ouvi isso de duas pessoas insuspeitas de ser derrotistas.
Além do escândalo da vez — seja furacão, sanguessuga, vampiros, mensalão, dossiê do Hotel Ibis, dólares na cueca —, o que preocupa é o desrespeito à lei. Constante, diário. Dos morros cariocas, onde o Estado não entra, à Floresta Amazônica, onde o Estado não chega, e os grileiros agem livremente, o que falta ao Brasil é o que em inglês se chama law enforcement. O que seria isso em português? O império da lei ou fazer a lei ser cumprida são traduções possíveis, mas não suficientes. O conceito é que falta.
A tribo pirahã, no Rio Maici, sul do Amazonas, na divisa com Rondônia, impressiona os lingüistas estrangeiros que a estudam porque não sabe contar. E a ciência se divide entre os que acham que ela não sabe contar porque não tem as palavras, e os que acham que ela não tem as palavras porque não tem o conceito. Seja qual for a relação causal, o fato é que a idéia de que a lei se imponha por uma força intrínseca, que faz com que ela seja obedecida pelos cidadãos, sob pena de enfrentar seus rigores, é o princípio que falta, o conceito inexistente.
O problema é que esse não é um princípio qualquer. Sobre ele é que se constrói uma sociedade civilizada. Esse princípio que podemos reforçar ou perder definitivamente.
Que escolhas coletivas faremos nesta nova chance que temos?