Uma lição simples da culinária política o Brasil aprendeu com o sábio Sobral Pinto, quando ele disse que “não existe democracia à brasileira, apenas peru à brasileira”. A idéia de novos ingredientes para se preparar com tempero local o modelo ideal está fazendo com que o Equador queime sua chance. Na França, que entende de política — e de bons pratos — a renovação se faz com emoção e democracia.
O Equador quer renovar sua elite política. Bom sonho, com o qual nós mesmos andamos sonhando por aqui. Mas isso se faz dentro do processo democrático, e não fora dele, como imagina Rafael Correa. O presidente do Equador se envolveu numa briga com lances inesperados, grosserias institucionais e guerra entre poderes.
Não precisava: tem a favor dele o poder, o apoio popular e sua própria juventude.Recebeu quatro de cada cinco votos na última eleição para saber se haverá Constituinte. Mas resolveu fazer um prato à moda da casa venezuelana, seguindo o “chef” Hugo Chávez, e o cozido vai desandar.
Rafael Correa ganhou o mandato vencendo, em dois turnos, o rei da banana, um político ultrapassado, o expresidente Gustavo Noboa.
Tinha muita chance de encerrar um período de catástrofe no país: em dez anos houve oito governos, o país já teve 18 constituições, alguns dos últimos governantes duraram dias. Em vez de construir seu processo de mudança dentro da lei, resolveu cortar caminho. Correa — com a ajuda de aliados nos outros poderes — comandou as seguintes barbaridades: suspendeu os mandatos de 57 deputados porque eles eram contra a convocação da Constituinte; ameaçou prendêlos e deu os mandatos aos suplentes governistas; por fim, demitiu os ministros da Corte Constitucional que se atreveram a votar em favor dos deputados cassados. O debate no país agora é surrealista.
Ontem o jornal “El Universal” trazia análises sobre se devem ser nomeados os novos ministros da Corte Constitucional ou se ela pode ficar fechada até o fim da Constituinte. Pelo sim, pelo não, o governo prepara listas tríplices para que o Congresso, formado pelos suplentes dos cassados, nomeie os novos ministros do tribunal. O cientista político equatoriano Alejandro Moreano, da Universidade de Quito, ouvido pelo GLOBO, disse: “É claro que foi tudo um festival de inconstitucionalidade, inclusive por parte do Executivo, mas a meu ver foi necessário.” A tese da “inconstitucionalidade necessária” é o melhor caminho para desandar a democracia. Para completar a seqüência de golpes de marketing, Correa deu 72 horas para o representante do Banco Mundial sair do país, uma vingança pessoal contra um burocrata que suspendeu um empréstimo quando ele, na época ministro da Economia, não cumpriu as condicionalidades.
A França vive graves dilemas sociais e uma estagnação econômica. Com esse pano de fundo, entrou numa eleição na qual mostrou todo o vigor que as grandes e sólidas democracias têm em momentos de desafio. Ao fim do primeiro turno, várias novidades no quadro político francês. Os dois vencedores, Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal, são de grupos políticos opostos, mas ambos representam uma renovação da política francesa. No Partido Socialista, figuras tradicionais foram deixadas de lado — Lionel Jospin, Laurent Fabius —, e o partido preferiu o risco de lançar uma cara nova e um novo gênero. A ultradireita do racista e intolerante Jean-Marie Le Pen, que já chegou até ao segundo turno anos atrás, ficou em quarto lugar. O centro, de François Bayrou, mostrou força, quebrando temporariamente a eterna polarização esquerda-direita da França. Os eleitores de centro, que as últimas pesquisas mostram estar mais para a direita que para a esquerda, serão o fator decisivo. O belo espetáculo francês reserva ainda fortes emoções nesta reta final.
Com todas as diferenças, França e Equador enfrentam o mesmo dilema: como incluir populações excluídas.
Na França, imigrantes ou filhos de imigrantes explodiram em revoltas de rua nos espantosos momentos do outono de 2005. No Equador, como em outros países da região, há fatias grandes da população excluídas desde sempre. Foi por frustrar esses grupos que tantos presidentes caíram na década da incerteza que começou em 1995.
O ex-presidente do Equador Lucio Gutiérrez não tinha votos suficientes para ganhar o segundo turno e, por isso, se uniu ao Movimento Pachakuti, braço político da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador. Ganhou a eleição e seis meses depois os tirou do governo. Perdeu a maioria e comandou um governo instável, num sistema multipartidário e polarizado. A mesma instabilidade vivida nos governos Abdalá Bucaram e de Jamil Mahuad.
Com a força que recebeu das urnas, Correa poderia ser a renovação, a conciliação e a mudança, mas ingressou na mesma aventura de alguns governos sul-americanos, com a conversa demagógica de que estão defendendo o povo. No Brasil, o grupo no poder já deu mostras de que tem gosto para ingredientes estranhos. Preferia uma democracia à moda da casa, com censura à imprensa, por exemplo, como a sugerida pelo deputado Ricardo Berzoini. Felizmente aqui nós aprendemos, com alguns mestres e muitas dores, que existe apenas a Democracia.
Ela não se adapta à culinária local. Segue receita universal.