"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", estabelece o artigo 5º da Constituição brasileira. Mas alguns são mais iguais que os outros, ressalva uma regra não escrita que, por condicionar com penosa freqüência o comportamento do Judiciário, acabou transformada num parágrafo secreto do artigo 5º. Essa esperteza influencia sentenças desde a instalação do primeiro tribunal nestes trêfegos trópicos. No sábado, graças a uma decisão do ministro Cesar Peluzo, o país constatou que o parágrafo secreto do artigo 5º vigora também no Supremo Tribunal Federal. Apoiada no vastíssimo material incriminatório colhido durante meses por investigadores destacados para a Operação Furacão, a Polícia Federal solicitou a prisão preventiva da primeira leva de detidos por envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. A Justiça autorizou a permanência nas celas de 21 dos 25 integrantes da comissão de frente do bloco dos pecadores. Quatro escaparam. Juiz de Direito de carreira, o ministro Peluzo decidiu devolver prontamente à liberdade quatro colegas de profissão: os desembargadores José Ricardo de Siqueira Regueira, José Eduardo Carreira Alvim e Ernesto Dória, além do procurador-regional da República João Sérgio Leal Pereira. Também acusado de porte ilegal de arma, Dória continuaria algumas horas na gaiola. Poucas. Logo todo o quarteto estaria nas ruas. A montanha de provas materiais e evidências contundentes erguida nos últimos meses pela Polícia Federal informa que, aos olhos da lei, não existem diferenças relevantes entre os 25 capturados. Como ocorre em qualquer organização criminosa moderna, também a máfia da jogatina eletrônica respeita organogramas. Alguns mandam, outros obedecem. Há quem planeje e há quem execute tarefas, distribuídas conforme a especialidade profissional de cada comparsa, ou a atividade que oficialmente exerce. Mas são todos, essencialmente, bandidos. Se valesse o que prescreve o artigo 5º da Constituição, todos receberiam tratamento idêntico. São iguais. Mas o parágrafo secreto avisa que figurões do Judiciário são mais iguais que os outros. Conjugada com premissas do código do corporativismo, a norma discriminatória recomendou a Peluzo desmembrar o processo. O caso dos doutores delinqüentes é coisa para o STF, resolveu o ministro. Os 21 advogados, delegados, empresários e bicheiros que completam a cúpula da quadrilha não terão a companhia dos quatro parceiros no mesmo banco dos réus. Uma recente pesquisa feita pelo Jornal do Brasil comprovou que 80% dos leitores não confiam na Justiça. Dias depois, um levantamento nacional divulgado pela Folha de S.Paulo ratificou a taxa de descrença: a cada 10 brasileiros, oito reprovam o desempenho do Judiciário. Esse altíssimo índice de ceticismo não é fruto do espanto causado pela captura de magistrados que vendem sentenças. Primeiro, porque isso não configura uma novidade. Depois, porque meliantes existem em todas as profissões. A desconfiança amazônica resulta da sensação de que o Brasil virou um paraíso da impunidade. Peluzo perdeu uma boa chance de, simultaneamente, melhorar a imagem da instituição a que pertence - composta em sua esmagadora maioria por gente honesta - e a paisagem brasileira, ameaçada pela renúncia coletiva à esperança. Se tivesse autorizado a prisão preventiva dos quatro suspeitos, o ministro demonstraria que o Judiciário vai aprendendo a lidar até com pecadores de estimação infiltrados nos tribunais. Sobretudo, teria provado que existem juízes dispostos a revogar o parágrafo secreto que adultera o princípio constitucional da igualdade perante a lei. Que pena, ministro. |