domingo, março 25, 2007

FERREIRA GULLAR

A sociedade sem crime


O que determina o desvio comportamental das pessoas que se tornam criminosas?

A SOLIDARIEDADE com os pobres, que é um sentimento louvável e antigo, ganhou força nova, no século 17, a partir de Rousseau, para quem a sociedade civil e as instituições do Estado eram culpadas da corrupção do ser humano, o qual, segundo ele, nascia bom e puro. Se no Romantismo o pobre se contrapunha ao rico, mais tarde, na concepção de Marx, o lugar do pobre foi ocupado pelo operário, que se contrapunha ao capitalista, com a diferença de que, agora, tratava-se de uma luta de classes, cujo desfecho, previsto pelo marxismo, seria a substituição do capitalismo pelo socialismo, isto é, pela sociedade sem classes.
Na sua crítica radical da sociedade capitalista, Marx definiu o Estado burguês como uma ditadura exercida sobre as demais classes sociais. Segundo ele, o que efetivamente constitui a sociedade são as forças produtivas, suas bases materiais, sendo o Estado e tudo o mais construções intelectuais, ideológicas, que encobrem a verdadeira realidade social. Na sociedade sem classes, eliminado o Estado e as demais alienações, o homem enfim se reencontraria consigo mesmo para viver uma vida verdadeira.
Dentro dessa concepção, como deveria ser entendida a penalização do crime? A questão foi abordada por Norberto Bobbio, no livro "Nem com Marx nem contra Marx", editado recentemente pela Unesp. Trata-se, na verdade, de uma carta que ele escreve a Alessandro Baratta sobre o tema, em que observa não ter Marx dado muita atenção a esse problema, que costumava ser abordado a partir do que alguns marxistas italianos costumavam chamar de "teoria material do desvio". O que determinava o desvio de comportamento das pessoas que se tornavam criminosas?
Bobbio, em sua carta, chamou atenção para o perigo que significava levar em conta exclusivamente as condições materiais, em contraposição à visão "idealista" dos não-marxistas. E diz: "Temo que isso possa terminar naquela supervalorização da base real sobre a superestrutura que -no que concerne ao problema de fundo da relação entre estrutura econômica de um lado e instituições e ideologias de outro- costuma ser condenada no próprio âmbito do marxismo como "economicismo"."
Neste momento em que a criminalidade está no centro dos debates na sociedade brasileira, parece-me oportuno refletirmos sobre essas considerações de Bobbio, intelectual de indiscutível lucidez, que se destacou como estudioso e crítico isento do pensamento marxista. E, se o considero oportuno, é porque tende-se, hoje, no Brasil, a afirmar que o combate rigoroso ao crime é uma posição de direita, que ignoraria o fato de que as causas da criminalidade estão na desigualdade social. Noutras palavras, prender, condenar, segregar os criminosos seriam, no fundo, modos de defender a manutenção da desigualdade e, assim, tomar o partido do opressor contra o oprimido. Já tive oportunidade, em artigos anteriores, de afirmar que a luta contra a desigualdade social deve ser o objetivo primeiro da sociedade, mas que é um equívoco condicionar a isso a ação das autoridades e da cidadania contra o crime.
Discutindo essas questões, Bobbio ressalta que não defende o idealismo das essências "universais" contra o materialismo, e que não é necessário ser marxista para entender que "toda sociedade tem seus crimes específicos". Mas adverte: "É preciso evitar o erro oposto, qual seja, o de pensar que "os fenômenos do desvio e da repressão" devem ser interpretados como "aspectos específicos da formação socioeconômica do capitalismo avançado". E acrescenta : "Uma tese deste gênero, que é, antes de tudo, historicamente insustentável, tem o único efeito de se acreditar e fazer acreditar que basta eliminar o capitalismo para eliminar o desvio" (ou seja, o crime).
No caso atual do Brasil, quando a hipótese concreta da implantação do socialismo já não se põe, persiste, não obstante, um diagnóstico da criminalidade cujas raízes estão naquela visão equivocada que Bobbio diagnosticou.
A visão simplista, que entende as relações entre a infra-estrutura material da sociedade e a superestrutura como um determinismo, ignora a autonomia relativa das formas de consciência, que o próprio marxismo defende. Daí a ilusão de Bukharin, para quem, desaparecido o capitalismo, não haveria mais necessidade "nem de polícia, nem de cárceres, nem de decreto, nem de nada".
A história provou o contrário e, ao fazê-lo, ensinou-nos que a realidade social é bem mais complexa do que sonha a nossa vã filosofia.