sábado, março 31, 2007

VEJA Carta ao leitor


Um passo na direção certa

André Dusek/AE
Deputados no plenário da Câmara: é preciso dar um basta ao ninguém-é-de-ninguém da fisiologia

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu uma grande contribuição à depuração da democracia brasileira, ao afirmar que os mandatos parlamentares pertencem aos partidos, e não aos cidadãos eleitos. Um dos pressupostos dos ministros do TSE é o de que a maioria esmagadora dos deputados federais (e estaduais e vereadores) se elege graças não aos votos dados a eles próprios, mas à agremiação pela qual se candidatam, como prevê a aritmética do sistema proporcional ora em vigor. De acordo com o TSE, somente 31 dos atuais 513 deputados federais tiveram votos nominais suficientes para chegar à Câmara. Os ministros também levaram em conta outra premissa, esta de fundo: a de que os protagonistas da democracia representativa são os partidos, e não as figuras dos políticos, já que os primeiros constituem a expressão legítima das diversas correntes de opinião que coexistem numa sociedade pluralista. De onde a incongruência de considerar o mandato como parte integrante do patrimônio privado de um indivíduo, do qual ele pode dispor a seu bel-prazer.

A interpretação do TSE não tem força de decisão, mas permite a uma agremiação pleitear de volta, na Justiça, o mandato de um parlamentar seu que resolva mudar de sigla. Ou seja, abre caminho para barrar o indecente ninguém-é-de-ninguém fisiológico que, a cada legislatura, só faz inchar a base governista – qualquer que seja ela. Para se ter uma idéia, desde a última eleição, em outubro, 23 deputados federais da oposição bandearam-se para as hostes do governo – traindo, assim, não só os seus partidos originais, como os votos dos eleitores descontentes com a atual administração. Na falta de uma reforma política feita pelos próprios políticos, o Judiciário emitiu um sinal vigoroso na direção desse sonho de uma noite de verão chamado fidelidade partidária. Se se conseguir que os parlamentares sigam nas agremiações que os elegeram, talvez seja possível construir partidos mais bem estruturados, menos venais e com plataformas que os distingam. Ganharia o eleitor em nitidez. Ganharia o país com uma democracia verdadeiramente representativa.

Anna Nicole Smith: a morte foi acidental

Nove remédios e um funeral

Esclarecida a causa da morte da ex-coelhinha
Anna Nicole: overdose acidental. Falta identificar
o motivo da obsessão dos americanos pelo caso

Kevin Winter/Getty Images


Aconteceu de novo: na segunda-feira um médico legista da Flórida convocou entrevista coletiva para divulgar o resultado da autópsia de Anna Nicole Smith – overdose acidental de remédios – e os Estados Unidos pararam para ouvir, especular, discutir. Ex-dançarina topless, ex-coelhinha da Playboy, ex-protagonista de reality show, garota-propaganda de produto para emagrecer, casada e rapidamente viúva de um bilionário nonagenário, não foi pelo currículo nem pela estatura moral que, na morte mais do que em vida, Anna Nicole se tornou uma obsessão americana. A atração vem da vida repleta de homens, drogas e escândalos, encerrada aos 39 anos com uma certeza unânime – só poderia terminar assim – e uma dúvida constrangedora – quem é, afinal, o pai de sua filhinha de 7 meses. Morta em 8 de fevereiro, duas semanas depois Anna Nicole era o assunto mais comentado em talk-shows de rádio e televisão dos Estados Unidos: 22% do tempo total. Os canais de notícias e de celebridades passaram dias dedicando tempo integral à cobertura das circunstâncias bizarras de sua morte e das brigas entre marido, namorado e mãe sobre onde seria enterrada e quem ficaria com a guarda da criança, Dannielynn. O enterro nas Bahamas, quase um mês depois, foi exibido em tempo real, da chegada do caixão – enfeitado com plumas e paetês – ao aeroporto à cerimônia final no cemitério, que ato contínuo virou ponto turístico, com tours organizados por agências. A divulgação da autópsia, em seus mórbidos detalhes, desencadeou a segunda onda do frenesi coletivo.

A causa da morte de Anna Nicole foi ingestão excessiva de um sedativo fora de moda, o hidrato de cloral. O medicamento foi prescrito pela psiquiatra Khristine Eroshevich no fim do ano passado porque "Anna tinha pesadelos, alucinações, não conseguia dormir" e não se dava bem com sedativos modernos. Também foram encontrados em seu organismo resíduos de pelo menos outros oito medicamentos, mas todos em "doses terapêuticas" – ao contrário do hidrato de cloral, cuja dose recomendada é de uma a duas colheres de chá ao dormir, mas que Anna costumava tomar direto do frasco. Tudo misturado, ela dormiu, entrou em coma, teve insuficiência respiratória e morreu.

Hans Deryk/Reuters
AP
Os três candidatos: Stern, o ex-companheiro, Virgie, a mãe, e Birkhead,
o ex-namorado, disputam a guarda de Dannielynn

A autópsia também constatou traços de metadona, substância usada no tratamento de viciados em heroína, mas sua ingestão ocorreu "vários dias antes da morte". Os braços apresentavam "sinais de agulha". Anna, que media 1,80 metro, pesava 81 quilos quando morreu. Estava "bem nutrida", tinha unhas "compridas e limpas" e "múltiplas extensões loiras" no cabelo. Apresentava um abscesso infeccionado na nádega, resultado de injeção de "produtos antienvelhecimento". "Deve ter tomado hidrato de cloral demais para tentar aliviar sintomas causados pela infecção", diz o relatório do legista. "Se tivesse ido para um hospital, não teria morrido." Já o inquérito policial da morte informa que no dia 5 de fevereiro Anna viajou das Bahamas, onde morava havia um ano, para a Flórida com a intenção de comprar um iate novo. Estava "animada", depois de meses de profunda depressão devido à morte do filho Daniel, também vítima de overdose de medicamentos e metadona, dentro do quarto de hospital onde, três dias antes, ela havia dado à luz. No avião, começou a reclamar de dor na nádega esquerda. Chegou ao hotel com febre, "tremendo e sentindo frio". Howard Stern, o advogado com quem havia se casado não oficialmente, o segurança Maurice Brighthaupt e a mulher dele, Tasma, que é enfermeira, iam chamar uma ambulância, mas ela recusou. Ficou três dias recolhida no quarto, tomando remédios e mascando chicletes de nicotina, até o começo de tarde em que foram chamá-la e a encontraram "com o rosto caído no peito, de boca aberta, sem respirar". A investigação mostrou que três médicos, pelo menos, forneciam receitas de medicamentos controlados a Anna.

Esclarecida a causa da morte, falta resolver a encrenca da paternidade de Dannielynn, exacerbada pela sua condição de potencial herdeira de uma parte dos 500 milhões de dólares deixados pelo velhinho milionário de quem Anna enviuvou. A guarda é disputada pelos dois candidatos mais fortes (há outros) a pai – o próprio Stern, que o é na certidão de nascimento, e o fotógrafo Larry Birkhead, cujo caso com Anna coincide com a época da concepção – e pela mãe de Anna, Virgie Arthur, a quem ela odiava. Aguarda-se para qualquer momento o resultado do teste de DNA – e, com ele, a terceira onda de delírio público em torno da loura de seios gigantescos que não sai mais da cabeça – e das TVs – dos americanos.

A LISTA DE ANNA

A autópsia encontrou no corpo de Anna Nicole traços dos seguintes remédios e substâncias:

hidrato de cloral (sedativo), Klonopin (ansiolítico), Valium (ansiolítico), Ativan (ansiolítico), Benadryl (anti-histamínico), Soma (relaxante muscular), Robaxin (relaxante muscular e sedativo), Topamax (contra enxaqueca) e Ciprofloxacina (antibiótico)

O avanço das hidrelétricas na Amazônia

A última fronteira

Com tecnologia menos agressiva ao ambiente,
novas usinas na Amazônia evitarão repetir os
desastres de Balbina e Tucuruí


Duda Teixeira

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Exclusivo on-line
Energia sem destruição

Uma nova fronteira está sendo aberta na Amazônia. Não se está falando, desta vez, de agricultura, e, sim, de energia. O governo federal pretende construir três hidrelétricas gigantes na região. Duas delas, a de Santo Antônio e a de Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, que constam do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), são a solução que o Palácio do Planalto habitualmente contrapõe à previsão feita por especialistas de que uma crise energética de grandes proporções se aproxima. Pela vontade oficial, as construções no Rio Madeira começariam no ano que vem, de modo que Jirau entrasse em operação em 2011 e Santo Antônio em 2012. Com capacidade somada de 6.450 megawatts, as duas usinas poderiam atender sozinhas ao consumo do estado do Rio de Janeiro. A terceira hidrelétrica, a de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, proporcionaria ainda mais energia, 11.000 megawatts, e também está no PAC. Apesar do empenho pessoal do presidente Lula, todos os projetos permanecem em compasso de espera devido a restrições ambientais. Na semana passada, o Ibama informou que o estudo da licença prévia das usinas do Rio Madeira, iniciado há 22 meses, chegou à fase final. Já os estudos de impacto ambiental de Belo Monte, embargados pelo Ministério Público desde 2001, recomeçaram a ser feitos em janeiro, com autorização judicial.

O Brasil dispõe de uma rigorosa legislação de proteção ambiental. Ela impõe aos projetos de novas hidrelétricas exigências minuciosas para reduzir ao máximo os efeitos negativos sobre a natureza e os moradores das proximidades. Na prática, infelizmente, as regras são usadas mais para bloquear obras de infra-estrutura do que para fiscalizar e proteger a natureza. Pelos dados do Ministério do Meio Ambiente, só no período de doze meses anteriores a agosto de 2006, 13.100 quilômetros quadrados de Floresta Amazônica – o equivalente a meio estado de Alagoas – foram derrubados para abrir espaço para a pecuária, a soja e outros fins. Os dados da devastação acelerada comprovam que a ameaça ambiental não está na construção de novas hidrelétricas, sobretudo porque estas adotam hoje tecnologias menos agressivas à natureza. O que aumenta o risco de o avanço energético na Floresta Amazônica fugir ao controle é o avassalador fracasso demonstrado pelo estado brasileiro no cumprimento da tarefa de fiscalizar e impedir a destruição de áreas que devem ser preservadas. "As obras do Rio Madeira poderiam incentivar a ocupação de uma vasta área da Amazônia cujo ecossistema é muito delicado", preocupa-se o biólogo americano Thomas Lovejoy, presidente do Centro Heinz para a Ciência, em Washington.

Os desafios ambientais e econômicos das três usinas previstas para a Amazônia são proporcionais ao seu tamanho. Belo Monte, no Pará, foi projetada ao lado de florestas com grande biodiversidade e tem como vizinhos dez tribos indígenas. As usinas do Rio Madeira estão perto demais de áreas preservadas e de terras indígenas e longe demais dos principais centros de consumo. O custo da linha de transmissão até o Sudeste já foi estimado em 10 bilhões de reais, o que encareceria bastante o projeto, orçado inicialmente em 20 bilhões de reais. O desafio ambiental, por sua vez, foi enfrentado com novas tecnologias de construção com menores impactos diretos na natureza. Dessa forma, será possível evitar a repetição dos desastres causados no passado pela construção de grandes hidrelétricas na região, como Balbina e Tucuruí. Inaugurada em 1984, Tucuruí, no Pará, alagou uma vasta área de floresta e afogou, sem remorso, toda a fauna que ali vivia. Também atraiu indústrias e migrantes, o que provocou a devastação de mais da metade da floresta nos sete municípios mais próximos. Nada disso se repetirá no Rio Madeira.

Divulgação
Usina de fio d'água no Rio Danúbio, na Áustria: sem reservatório


Em vez de uma só usina com um grande reservatório, o projeto prevê duas menores, cujas turbinas serão acionadas pelo sistema a fio d'água. Nesse método, toda a água que chega é aproveitada pelas turbinas, do tipo bulbo, e, em lugar de formarem um lago, as águas avançam 500 metros em cada margem do rio durante o período de cheia. O projeto prevê ainda que as árvores da área a ser alagada sejam retiradas antes e de forma progressiva. Desse modo, os animais podem sair andando e não se forma um lago que se tornaria uma fonte de gases de efeito estufa causado pela decomposição do material orgânico, como ocorre hoje na usina de Balbina. As empresas Furnas e Odebrecht, que financiaram os relatórios de impacto ambiental das usinas, propõem que os canais laterais para a passagem dos peixes que sobem o rio no período da desova tenham curvas e fundo irregular, para imitar o leito natural. Seria possível controlar a quantidade de água e a correnteza para favorecer diferentes espécies de peixe, de acordo com a época do ano.

As medidas para reduzir os impactos ambientais nas novas hidrelétricas representam uma gorda fatia do total da obra. Na usina de Peixe Angical, uma obra da iniciativa privada inaugurada no ano passado no Rio Tocantins, as medidas sociais e ambientais responderam por 13% do orçamento. O projeto exemplar incluiu a construção de hospital e residências para as pessoas desalojadas, aterros sanitários, cursos de educação ambiental, viveiros de espécies retiradas e o resgate de 55.000 animais, entre eles um milhar de invertebrados. Até minhocas foram recolhidas e transportadas para locais seguros. Nas usinas do Madeira, grupos de investidores já deram demonstrações de que aceitam arcar com esse custo ambiental. "A maior ou menor degradação do ambiente depende de quanto um país está disposto a investir em medidas que reduzam ou compensem o impacto", diz o engenheiro Rafael Schechtman, diretor do Centro Brasileiro de Infra-estrutura (CBIE), uma consultoria do Rio de Janeiro. "A questão é saber se a sociedade está disposta a arcar com esse custo."

O último projeto das usinas do Rio Madeira enviado para análise do Ibama reserva áreas para a construção, em uma segunda etapa, de eclusas, tanques de água que permitem às embarcações superar o desnível das barragens. Uma vez concluídas, as eclusas vão permitir que a produção agrícola de Rondônia e de Mato Grosso – que hoje é transportada com dificuldade por uma estrada federal toda esburacada – seja levada em barcaças até Porto Velho ou Itacoatiara, no estado do Amazonas. Neste último porto, o carregamento poderia ser transferido para navios maiores e seguir diretamente para destinos em qualquer ponto do mundo. Com a construção de mais uma usina na fronteira com a Bolívia e outra no país vizinho – projetos que teriam o apoio e o financiamento brasileiros –, a hidrovia pode chegar a 4.155 quilômetros, por vários rios. Um estudo considera que a hidrovia proporcionará um aumento na produção de grãos de 28 milhões de toneladas ao ano na área de influência do projeto. De acordo com uma conta feita pela ONG Amigos da Terra, isso vai requerer um aumento de 350.000 quilômetros quadrados na área agrícola, o que daria uma área maior do que São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos. Evidentemente, cabe ao estado o dever de impedir que o crescimento da produção ocorra à custa de desmatamentos da Floresta Amazônica.

As dificuldades criadas por motivo ambientalista vão adiar, mas não devem impedir para sempre, a instalação de outras hidrelétricas na Amazônia. A pressão por novas fontes de energia no Norte tem boas razões para existir. Dados da Eletrobrás mostram que o Brasil dispõe em seus rios de quedas-d'água em quantidade suficiente para multiplicar por quatro sua capacidade hidrelétrica – mas 40% de todo esse potencial está na bacia do Rio Amazonas. Fora da Região Norte, poucos locais poderiam receber usinas com capacidade maior do que 1.000 megawatts, o necessário para abastecer uma cidade com 3 milhões de habitantes. "Estamos todos voltados para o norte. As grandes hidrelétricas que podiam ser feitas no restante do Brasil já foram construídas", diz Renato Lanzi, diretor da Alstom, que cogita instalar uma fábrica de turbinas em Porto Velho para suprir futuras obras na Amazônia e no exterior. Se a economia brasileira crescer 5% ao ano, como está nos planos do governo Lula, será preciso acrescentar 3.500 megawatts por ano à capacidade energética do país. Com a construção das pequenas hidrelétricas e termelétricas que já receberam licença ambiental, o máximo de acrescimento até 2010 será de 1.272 megawatts anuais, segundo o CBIE. "A partir do ano que vem, o sistema elétrico já poderá operar no limite", diz Adriano Pires, diretor da consultoria. "Bastará uma temporada de chuvas fracas ou um aumento no consumo para que tenhamos um novo apagão."

Das usinas de menor porte que conseguiram a licença prévia do Ibama e foram oferecidas em leilão para ser construídas pela iniciativa privada, poucas despertaram o interesse dos investidores. Um dos motivos é o medo de ter a construção interrompida. Atualmente, qualquer cidadão munido de título de eleitor pode recorrer à Justiça e mudar completamente o andamento da obra de uma usina caso a ação seja aceita por um juiz. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), existem 25 usinas hidrelétricas com cronograma parado ou atrasado devido a obstáculos criados pelo Ibama, pelo Ministério Público, por órgãos estaduais e movimentos ambientalistas. O preço congelado das tarifas e a elevada carga tributária que incide nas contas de luz, de 51%, também afugentam os investidores. "Não podemos nos comprometer com projetos que nos farão perder dinheiro. É minha obrigação dar um retorno aos acionistas", diz António Martins da Costa, diretor-presidente da Energias do Brasil, grupo europeu responsável pela hidrelétrica de Peixe Angical. A Energias anunciou no ano passado a disposição de investir 1 bilhão de reais em novas usinas, mas o dinheiro ainda está guardado no banco. "Em vez de termos um desenvolvimento sustentável, estamos enfrentando uma estagnação insustentável", define Jerson Kelman, diretor-geral da Aneel.





Foto Nilton Rolin


Araquém Alcântara



Rio Madeira, em Rondônia: duas usinas hidrelétricas de menor impacto ambiental

A revolução do contêiner

A caixa que encolheu a Terra

Como o contêiner barateou o transporte
e revolucionou o comércio mundial


Giuliano Guandalini

Convencionou-se dizer que o avião, as telecomunicações e a internet viabilizaram a globalização ao derrubar fronteiras e encurtar distâncias. Do ponto de vista do comércio mundial, no entanto, nenhuma invenção teve mais impacto do que o contêiner – aquela grande caixa metálica com tamanho padronizado internacionalmente que pode transportar, por trens, navios e caminhões, produtos tão distintos como grãos de café e iPods. Os contêineres são uma espécie de herói esquecido da globalização, e não é difícil entender por quê. Há cinqüenta anos, encher um navio cargueiro com mercadorias levava até uma semana de trabalho ininterrupto. A tarefa exigia centenas de estivadores, que, sindicalizados, transformavam os portos em centros de roubalheira e ineficiência – ambiente retratado nas telas pelo clássico Sindicato de Ladrões (On the Waterfront), de 1954, do cineasta Elia Kazan. Graças aos contêineres, com dimensões padronizadas há quase quatro décadas, um trabalhador, operando uma grua computadorizada com seu joystick, faz o mesmo serviço num único dia sem a ajuda de estivadores. O impacto no comércio foi irreversível. O custo do frete caiu de 20% para 1% do valor final da mercadoria – uma queda de 95%. Os portos viram sua produtividade avançar rapidamente a partir de 1970 e ajudaram a deslanchar o comércio global – as exportações mundiais cresceram 500% de 1980 para cá.

O sucesso do contêiner só foi possível graças à padronização de suas dimensões. Para que isso ocorresse, países e empresas engalfinharam-se num conflito que se arrastou por toda a década de 60 do século passado. Havia certo consenso sobre a altura e a largura das caixas. Elas não poderiam ser tão amplas a ponto de não circular pelas rodovias e ferrovias nem tão altas a ponto de não passar por baixo de viadutos. O embate deu-se em torno do comprimento. Cada transportadora queria impor o seu. Nos Estados Unidos, as duas maiores empresas de transporte marítimo usavam caixas de comprimentos distintos, de 35 pés e de 24 pés, o que provocava o caos. "Se o tipo de contêiner usado por uma empresa de transportes não servisse nos navios ou trens de outras, cada companhia precisaria ter uma enorme frota para atender apenas os seus clientes", diz o economista americano Marc Levinson no livro The Box – How the Shipping Container Made the World Smaller and the World Economy Bigger (A Caixa – Como o Contêiner Tornou o Mundo Menor e Ampliou a Economia Mundial), lançado recentemente nos Estados Unidos. A falta de padronização impedia ainda que os contêineres feitos nos Estados Unidos pudessem ser usados na Europa, e vice-versa. O impasse só se dissolveu no fim da década de 60, quando a International Organization for Standardization (ISO), uma associação internacional que busca estabelecer padrões, definiu e publicou cinco dimensões básicas a ser seguidas – duas, a de 6,06 metros (20 pés) e a de 12,19 metros (40 pés), tornaram-se mais populares. Definidos os padrões, o contêiner, como uma linguagem simples e universal, passou a circular por todo o mundo.

Ninguém sabe o número ao certo, mas estima-se que existam hoje perto de 20 milhões dessas caixas metálicas em atividade. Enfileiradas, dariam quase três voltas em torno da Terra. Também é difícil precisar quem as inventou. Os primeiros contêineres foram utilizados em 1920 exclusivamente no transporte ferroviário. Mas a idéia de transportar a mesma caixa por diferentes meios de transporte só apareceu em 1956 – dois anos depois da estréia de Sindicato de Ladrões. O pai do atual modelo de logística de transporte de cargas foi o americano Malcom McLean, morto em 2001 aos 87 anos. McLean começou no ramo de transportes com um único caminhão e tornou-se dono de uma das maiores transportadoras dos Estados Unidos. Em 1937, enquanto aguardava a carga de seu caminhão ser lentamente retirada pelos estivadores, ele concluiu que a operação seria muito mais rápida se a carreta pudesse ser colocada diretamente sobre o navio. McLean trabalhou durante duas décadas para colocar sua idéia em prática. Em abril de 1956, o Ideal X, navio utilizado na II Guerra e adaptado por McLean para transportar carga, zarpou do Porto de Newark, em Nova Jersey, com destino ao Porto de Houston, no Texas, carregando 58 contêineres. Desde então, a caixa metálica se popularizou, e o transporte de mercadorias nunca mais foi o mesmo.

Malharias catarinenses ganham as passarelas

Básico? Que básico?

Malharias de Santa Catarina compram grifes do
sSudeste, mudam de cara e ganham as passarelas


Silvia Rogar, de Jaraguá do Sul e Brusque

Otavio Dias de Oliveira
Amir Slama, entre Donini e Gil Karsten, da Marisol: Rosa Chá "made in" Jaraguá do Sul

O momento mais aguardado do Fashion Rio, o principal evento da moda carioca, é a entrada de Gisele Bündchen na passarela. Curiosamente, ela não veste a camisa de nenhuma marca local: desde 2005, desfila com exclusividade para a Colcci, grife controlada pelo grupo catarinense AMC Têxtil. Ter a top model como garota-propaganda é apenas um sinal das mudanças nas malharias de Santa Catarina, que ganharam projeção nacional graças à mão-de-obra com disciplina germânica e ao maquinário de ponta. Agora, uma nova geração de empresários vem apostando num ingrediente que era escasso no estado: estilo. Por isso, eles têm arrematado marcas de roupa badaladas e contratado profissionais experientes do eixo Rio–São Paulo. Até na moda praia estão conquistando seu naco: antes de parar no corpinho de fãs da grife, entre elas a modelo Naomi Campbell e a socialite Paris Hilton, boa parte dos biquínis da Rosa Chá já é produzida em Jaraguá do Sul, uma cidade com 133.000 habitantes. É lá que fica a sede e a principal fábrica da Marisol, que, em abril do ano passado, comprou 75% da linha paulistana de moda praia.

O casamento das duas empresas teve como impulso a gestão de marcas, idéia repetida como um mantra pelos jovens executivos têxteis catarinenses. O sonho deles é ambicioso: guardadas as devidas proporções, querem consolidar, nas próximas décadas, conglomerados brasileiros a exemplo do gigante francês LVMH, que controla a Louis Vuitton e a Dior, entre outras grifes. "Vender malha a quilo e roupa barata é uma coisa que, hoje, qualquer um pode fazer. Fomos atrás do produto acabado para aumentar o valor agregado do que fabricamos", diz Arnaldo Sampaio, diretor comercial da Colcci. Isso porque a competição vem agora de todas as partes. A partir do início dos anos 80, surgiram pólos têxteis em todas as regiões do país. Depois, foi a vez de a China barrar a velocidade do crescimento da indústria brasileira. "Dar mais personalidade ao produto virou uma necessidade, principalmente para as empresas que têm a ambição de crescer no mercado internacional", comenta Giuliano Donini, 32 anos, diretor de marketing da Marisol, que faturou 440 milhões de reais em 2006.

Além da compra da Rosa Chá, fundada pelo estilista Amir Slama, que continua no comando da criação, a escalada da malharia na moda inclui a Lilica Ripilica, linha infantil que tem 119 franquias e bate ponto em 2 800 multimarcas. A Marisol deu a sua maior cartada em setembro passado, quando inaugurou uma loja de 70 metros quadrados da Lilica na Via della Spiga, a poucos passos da Prada e da Dolce&Gabbana – ponto comercial dos mais nobres de Milão. Desde 2004, a etiqueta também é patrocinadora e desfila suas graciosas roupas para meninas no Fashion Rio.

Eduardo Marques/Tempo Editorial
Thaís Losso e equipe da Sommer: modernos invadem a pequena Brusque

Caso ainda mais impressionante é o da AMC Têxtil. Fundado em 1980, o grupo começou a trilhar novo caminho em 2000, quando deixou de ser apenas fabricante de malhas e comprou a Colcci, até então uma marca jovem de roupas, voltada para as classes C e D. Sob nova administração, a linha virou fenômeno. Com crescimento que gira em torno de 40% ao ano desde 2004, a etiqueta vendeu 3 milhões de peças em 2006 e já tem franquias nos Estados Unidos, na Guatemala, na Espanha e nos Emirados Árabes. Por trás do sucesso da AMC está Alexandre Menegotti, 35 anos, herdeiro e executivo do grupo. De desconhecido completo, ele passou a um dos manda-chuvas da moda nacional ao adquirir também as marcas paulistanas Sommer – sucesso entre os descolados – e Carmelitas, que cria roupas com acabamentos e detalhes sofisticados. "Nossa preocupação é não deixar o design ficar em segundo plano", diz Alexandre. A nova ênfase em estilo também teve seus reflexos nas universidades: Santa Catarina é hoje o segundo estado em cursos de moda do país, perdendo apenas para São Paulo.

Na AMC, chama atenção o vaivém de modernos pelos corredores. Com roupas e acessórios extravagantes, eles contrastam com o clima pacato de Brusque, município onde fica a sede do grupo. "Meus amigos de São Paulo achavam que eu não passaria nem três meses aqui. Mas já estou há um ano e meio – e muito feliz. Agora, muita gente de lá pergunta se há novas vagas na AMC", diz Thaís Losso, 32 anos, estilista da Sommer. Ela substituiu Marcelo Sommer, que, em 2004, vendeu sua grife à AMC e, dois anos depois, se desligou totalmente da direção criativa. Dos seis profissionais da equipe de Thaís, cinco vieram de marcas paulistanas.

Para profissionais vindos do Sudeste, as empresas têxteis de Santa Catarina costumam pagar salários até 50% maiores que os de São Paulo. Edinho Vasques, que tinha no currículo passagens pela Zoomp e pela Hugo Boss, é um deles. Já completa quatro anos no estado e, atualmente, é gerente de marketing da Dudalina. "Quem vem para cá tem de saber que a disciplina é mais rigorosa: o trabalho começa pontualmente às 8 horas", diz ele, que morava num apartamento alugado de dois quartos nos Jardins e, agora, é dono de uma casa de 250 metros quadrados com piscina e decoração impecável, em Brusque. "Existe um choque cultural para os dois lados, mas temos todo o cuidado para minimizar os contrastes", reconhece Ciro Roza, prefeito da cidade. Acostumado a trabalhar em São Paulo, cidade onde fundou a Slam, grife associada à ferveção das pistas de dança, o estilista Giuliano Menegazzo ainda diz sentir a diferença. Com visual clubber e tatuagens enormes, ele trabalha há seis meses em Blumenau, onde coordena o estilo das marcas da Dudalina. "Às vezes me olham demais na rua, eu me sinto praticamente um E.T.", comenta.

Betty Milan, a nova colunista de VEJA

Você fala e ela
escuta de verdade

A escritora e psicanalista Betty Milan, agora
colunista de VEJA, reúne em livro as experiências
de seu "consultório sentimental"


Thaís Oyama

Lailson Santos
Betty: a partir de maio, seu "consultório sentimental" estará no site de VEJA. Os leitores poderão enviar e-mails com dúvidas sobre amor, sexo e relacionamentos


"Digo, logo existo." A escritora e psicanalista Betty Milan gosta de citar a versão lacaniana do axioma mais famoso de Descartes. Falar, argumenta ela, é o primeiro passo para observar-se. E observar-se é o primeiro passo para libertar-se – seja de preconceitos, de medos ou das armadilhas do inconsciente. O livro Fale com Ela (Editora Record; 335 páginas; 30 reais) é fruto dessa convicção. Nele, a autora reúne 85 cartas e e-mails enviados por leitores da coluna semanal homônima que ela manteve na Revista da Folha, do jornal Folha de S.Paulo, por dois anos. A compilação dessas correspondências compõe um tocante catálogo das aflições humanas: há o marido que se recrimina por pedir à mulher que se fantasie na hora do sexo, a solitária que pergunta se pode ser feliz mesmo sendo feia e a mulher que considera o marido perfeito mas não consegue largar o amante que a maltrata. A todos, a autora responde valendo-se das duas ferramentas que domina, a literatura e a psicanálise.

Ao citar poemas de Manuel Bandeira para um homem de 70 anos que lhe confessa a paixão por uma jovem de 20 ou explicar para o marido que quer a mulher fantasiada que "não somos donos de nós mesmos" e estamos todos "sujeitos a algo que nos escapa e determina os nossos atos, o inconsciente", Betty Milan não oferece soluções, mas aponta possibilidades. Diz ela: "Liberdade, inclusive a sexual, só é possível quando existe liberdade subjetiva. E a possibilidade de liberdade subjetiva, por sua vez, aparece quando você se escuta, percebe os imperativos do inconsciente e liberta-se deles". A partir de maio, o endereço eletrônico de VEJA (vejaonline.abril.com.br) hospedará o "consultório sentimental" de Betty Milan. Nele, a escritora e psicanalista responderá a dúvidas de leitores sobre amor, sexo, casamento e família. Um exercício de liberdade destinado ao sucesso.

Descendente de imigrantes libaneses, a paulistana Betty Milan sempre quis ser escritora. Mas, como a tradição familiar rezava que ao filho primogênito estava reservado o título de doutor, ela escolheu fazer medicina. Na faculdade, Betty descobriu a psiquiatria – que, concluiu, lhe possibilitava enxergar o ser humano de um ângulo muito mais interessante do que o das aulas de anatomia. Recém-doutorada na matéria, entrou para a Sociedade Brasileira de Psicanálise, onde ficou apenas o tempo de ser expulsa – suas críticas ao "behaviourismo" então dominante não foram bem recebidas. Expurgada, foi para a França procurar sua turma, ou melhor, sua nova turma.

O encontro com o psicanalista e filósofo Jacques Lacan – a quem pretendia propor que enviasse um discípulo para o Brasil – mudou sua vida. "Ele me arrebatou", diz. Quatro meses de análise no célebre consultório da Rue de Lille – e a "transferência rolando solta" – fizeram com que Betty decidisse se separar do marido brasileiro e fincar o pé na França. A convivência com Lacan, primeiro como paciente, mais tarde como sua tradutora e assistente, durou quatro anos. A experiência está contada em O Papagaio e o Doutor, o segundo dos cinco romances da autora, publicado também na França. Pela falta de reverência com que a discípula descreve o mestre, o livro ganhou elogios de Catherine Millet, a última amante de Lacan ("É o seu mais fiel retrato") e críticas de Judith Miller, filha do psicanalista e herdeira oficial de sua obra ("É brasileiro demais").

No fim da década de 70, Betty casou-se com o historiador e editor de artes Alain Mangin, com quem viveu, no Brasil e na França, até a morte dele, há três anos. O casal teve um filho, que vive nos Estados Unidos, onde estuda cinema. Betty, hoje com 62 anos, continua morando metade do ano em São Paulo, metade em Paris. Em breve, verá encenada aqui a primeira peça escrita diretamente para o teatro, Brasileira de Paris, uma sátira do machismo e da libertinagem. Foi escrita para que as pessoas riam, segundo Betty. Certamente, fará mais que isso. Betty Milan é daquelas autoras que têm a rara capacidade de tirar, de cada pequena história, o seu caráter universal. Fale com Ela é outra prova disso.

Hormônios sintéticos contra o envelhecimento

Eles acreditam em bioidênticos

Há quem afirme que hormônios manipulados em
farmácias combatem o envelhecimento. Para a
medicina tradicional, é como crer em duendes


Anna Paula Buchalla

Vince Bucci/Getty Images
A atriz Suzanne Somers: a embaixatriz dos hormônios bioidênticos é bioidêntica a tantas outras


O assunto está em alta nos Estados Unidos desde que a atriz americana Suzanne Somers lançou Ageless: the Naked Truth about Bioidentical Hormones (em português, algo como Eterno – A Verdade Nua e Crua sobre os Hormônios Bioidênticos). O tema do livro, um dos mais vendidos da Amazon.com, são alguns hormônios sintéticos, feitos em farmácia de manipulação, com estrutura química e molecular exatamente igual à dos produzidos pelo organismo. Por que uma atriz se interessaria pelo assunto? Porque, assim como muita gente, acredita que essas substâncias têm um poder antienvelhecimento. A história dos bioidênticos tem mais de vinte anos. No começo, nem tinham esse nome. Depois que a terapia de reposição hormonal para mulheres na menopausa foi colocada na berlinda, em 2002, por um estudo que a associou ao aumento dos riscos de infarto, derrame e câncer de mama, eles, os hormônios manipulados, voltaram à ordem do dia – e com a nova denominação de bioidênticos. Há quem defenda que são uma alternativa mais segura e eficaz de repor o que falta na menopausa. Não são, de acordo com a maioria dos médicos. Também não há comprovação de que retardariam os efeitos do tempo, ao contrário do que prega a senhora Somers.

Há dois tipos de hormônios biodênticos. O primeiro é fabricado por laboratórios farmacêuticos. Vamos deixá-lo de lado. O segundo é feito, como já se disse, em farmácias de manipulação, a partir de extrato de soja e inhame mexicano, principalmente. Os defensores dos bioidênticos manipulados dizem que eles podem ser feitos sob medida para cada paciente. "É o que chamamos de customizar um remédio", diz o médico Ítalo Rachid, um dos precursores da disseminação desses hormônios no Brasil. Em comunicado oficial, a Sociedade de Endocrinologia dos Estados Unidos adverte que a fabricação individualizada de um hormônio, a tal "customização", é praticamente impossível de ser alcançada "porque os níveis de hormônio no sangue são difíceis de medir e regular devido às variações fisiológicas". Além disso, não há estudos que atestem os benefícios e riscos dos bioidênticos manipulados, que não são controlados pelos órgãos de vigilância sanitária – ao contrário daqueles fabricados pelos grandes laboratórios.

Há médicos que questionam até mesmo a adoção da palavra "bioidêntico". "Não há nada de científico nesse termo. É uma mera questão mercadológica", afirma o endocrinologista Amélio Godoy Matos, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. O grande apelo dos hormônios bioidênticos manipulados é o de que eles seriam naturais e, por isso, o organismo se mostraria capaz de metabolizá-los da mesma forma que faz com um hormônio do próprio corpo. No entanto, dizer que esses tratamentos são naturais, ou que não são remédios, como chega a propagandear Suzanne Somers, está longe de ser verdade. Um bioidêntico pode até derivar de plantas como soja e inhame mexicano, mas para se tornar um decalque de uma molécula humana é preciso sintetizá-lo artificialmente. Só se não tivesse de sofrer alterações em sua estrutura química é que poderia ser considerado natural.

Os médicos que defendem os hormônios bioidênticos manipulados partem da premissa de que os hormônios em geral seriam a chave capaz de desligar o processo de envelhecimento do corpo. Eles identificam, inclusive, 23 "pausas", afora a menopausa. Para cada uma dessas pausas, haveria um hormônio bioidêntico sob medida: testosterona bioidêntica, GH bioidêntico, DHEA bioidêntico, e por aí vai. "As taxas de hormônios não caem porque envelhecemos, e sim nós envelhecemos porque elas caem", diz o médico Rachid. Esse tipo de afirmação leva os médicos ortodoxos à loucura. Houve até um bate-boca, nos Estados Unidos, entre Suzanne Somers e médicos mais tradicionais no programa Larry King Live, da CNN. "Quando todos perceberem que basta repor o hormônio que perdemos no processo de envelhecimento, nas quantidades exatas de que precisamos, não será necessário tomar mais nenhum remédio", disse a atriz. Ao que um dos interlocutores – com diploma – retrucou: "Suzanne deveria deixar a prática médica para os médicos. Deixe que nós cuidamos dos pacientes". Ela atribui seus alegados 60 anos redondos aos hormônios bioidênticos – a ginástica pesada, as plásticas e as injeções de Botox, que a deixaram bioidêntica a tantas outras loiras de alegados 60 anos da Califórnia, a atriz deixa para lá. Grande atriz.

A biopropaganda

Para mulheres na menopausa
Os hormônios bioidênticos seriam mais eficazes e seguros do que o método convencional de reposição hormonal. Isso porque, além de serem cópias fiéis dos hormônios humanos, a sua dosagem seria feita sob medida para as necessidades de cada paciente.
Nem mais nem menos do que ela precisaria

A verdade
Não há estudos clínicos que atestem a segurança e a eficácia desses remédios. Formular as doses exatas de determinado hormônio é difícil porque essas substâncias existem em quantidades ínfimas no organismo e variam muito ao longo do dia

Para retardar o envelhecimento
Partindo do princípio de que a chave do envelhecimento está na queda da produção hormonal, os defensores dos bioidênticos argumentam que é possível voltar aos níveis hormonais da juventude.
Por exemplo, um homem ou mulher por volta dos seus 60 anos deveria ter a mesma quantidade de GH (o hormônio do crescimento) circulante no sangue que tinha aos 20 anos

A verdade
A queda hormonal é apenas uma parte do processo natural de envelhecimento. Nada se provou cientificamente sobre os poderes antienvelhecimento da reposição de hormônios, a não ser o alívio de sintomas associados à idade. A única teoria antiidade comprovadamente aceita pela comunidade médica é a da restrição calórica

Médicos receitam estatinas até para crianças

Até para os pequenos

Médicos americanos recomendam o uso de
estatinas para crianças com colesterol alto


Paula Neiva

Ben Edwards/Getty Images
Cuidado: os comprimidos só são indicados se exercício físico e dieta não resolverem

A Associação Americana do Coração acaba de divulgar a nova cartilha para o controle do colesterol alto infantil. O documento recomenda a prescrição de estatinas como primeira opção de tratamento para as crianças que não conseguem reduzir os níveis de LDL, o colesterol ruim, apenas com exercício físico e dieta. Lançadas no mercado em meados da década de 80, as estatinas revolucionaram o tratamento do colesterol alto. Até então, os únicos recursos disponíveis eram mudanças no estilo de vida – o que só funcionava para, no máximo, 20% dos pacientes. A indicação de estatinas para crianças está baseada nos estudos mais recentes sobre a gênese das doenças cardiovasculares, especialmente o infarto. De acordo com os médicos que elaboraram as novas diretrizes, "agora existem evidências definitivas de que o processo de acúmulo de gordura nas artérias começa na infância e sua progressão e severidade estão diretamente associadas aos níveis de colesterol". Por isso, eles defendem o uso de recursos mais agressivos desde cedo.

O tratamento medicamentoso contra o colesterol alto é indicado para meninos com mais de 10 anos e meninas depois da primeira menstruação cujas taxas de LDL sejam superiores a 190 miligramas por decilitro de sangue ou acima de 160 miligramas por decilitro, associadas a dois outros fatores de risco ou a histórico familiar de doença coronariana precoce. O objetivo é baixar esses níveis para 110 miligramas por decilitro ou menos – o mesmo valor de referência para adultos. "Os estudos realizados com crianças mostram que os efeitos colaterais são raros e que não há riscos de a terapia atrapalhar a maturação sexual desses jovens – uma preocupação pertinente, já que o colesterol é matéria-prima para a produção de hormônios", diz o cardiologista Francisco Fonseca, professor da Universidade Federal de São Paulo.

O documento da Associação Americana do Coração adverte que a opção pelas estatinas só deve ser feita se o colesterol não baixar o suficiente com a prática regular de atividade física e a adoção de uma alimentação equilibrada por, no mínimo, três meses ou quando o problema é causado por um distúrbio genético. "É preciso tomar cuidado para que a prescrição não se torne uma panacéia", diz a cardiologista Tânia Martinez, professora do Instituto do Coração, em São Paulo. "Antes de iniciar um tratamento medicamentoso, deve-se tentar exaustivamente baixar esse índices com mudanças no estilo de vida." O receio é que as estatinas se transformem numa espécie de "ritalina do coração". Ou seja, que elas se tornem, assim como o remédio indicado para a hiperatividade infantil, a primeira – e única – opção de pais pouco propensos a dar mais atenção a seus filhos.





Foto Digital Vision

Quilombolas de todas as cores pleiteiam terras

Eles querem
desmiscigenar
o Brasil

A pretexto de reforçar a identidade cultural das
minorias, o governo do PT induz à divisão étnica
da sociedade e faz uma reforma agrária paralela


Cíntia Borsato e José Edward

André Dusek/AE
A ministra Matilde Ribeiro: ela ganha para combater o racismo, mas acha "natural" que negro discrimine branco

Desde que foi nomeada ministra da Promoção da Igualdade Racial, em março de 2003, a assistente social Matilde Ribeiro submergiu na rotina pasmacenta da burocracia de boas intenções de Brasília – também existem ministérios para os pescadores, para os portos, para a mulher e para o turismo. A tarefa de Matilde guarda, no entanto, uma peculiaridade. Num país fortemente miscigenado, onde mazelas sociais se sobrepõem a diferenças raciais, é muito difícil, se não impossível, definir quem integra qual raça e quais etnias devem receber proteção do estado – prova disso é a polêmica em torno das cotas raciais em universidades e escolas. Na semana passada, a ministra Matilde tornou sua missão ainda mais complicada ao externar, numa entrevista à BBC Brasil, uma de suas concepções. Disse a ministra: "Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso". Para Matilde, portanto, é "natural" que negros discriminem brancos.

A declaração, que flerta com o crime de incitação ao racismo, mostra o despreparo da ministra para o exercício de seu cargo ou de qualquer outra função pública. Mas não deveria ser vista de forma isolada. Desde seu início, o governo do PT alimenta a diferenciação racial no Brasil a pretexto de reforçar a identidade cultural dos negros e reparar injustiças históricas. A parte mais explosiva dessa política de desmiscigenação não está nas cotas universitárias nem na declaração infeliz da ministra. Está na subordinação da reforma agrária a critérios étnicos e raciais. Nos últimos quatro anos, uma seqüência de medidas e decretos presidenciais induziu os brasileiros a se dividir em comunidades, cores e guetos raciais e ofereceu a cada um desses grupos o direito de pedir a desapropriação de terras hoje ocupadas por empresas, famílias e até ONGs. Tudo começou em 2003, quando, contrariando a Constituição, um decreto do presidente Lula permitiu aos descendentes dos antigos moradores de quilombos exigir do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o direito de receber o seu pedaço de chão. O decreto revogou um anterior, do governo FHC, que limitava o pleito aos descendentes de quilombolas que morassem nas áreas a ser requisitadas. Lula eliminou essa exigência, dispensou a chancela de laudos antropológicos e permitiu que a desapropriação seja conduzida após uma simples autodeclaração dos interessados. Resultado: desde que o decreto foi alterado, explodiu o número de comunidades que se auto-intitulam quilombolas, de 840 para cerca de 3.000. Com isso, a área potencialmente demarcável já chega a 20 milhões de hectares, o equivalente ao território do Paraná (veja o quadro). Um segundo decreto, de fevereiro passado, estendeu o direito dos quilombolas a outros grupos "tradicionais", como comunidades de terreiros urbanos, quebradeiras de cocos babaçu e pomeranos, entre outras.

Conforme o Incra avança na demarcação das terras, os conflitos começam a pipocar. Nos municípios de Campos Novos e Abdon Batista, na região serrana de Santa Catarina, o Incra deve desapropriar e entregar a quilombolas cerca de 8.000 hectares pertencentes a oitenta pequenos produtores rurais. Até o início do século passado, a área realmente pertenceu a ex-escravos. Mas eles não eram refugiados, e sim alforriados. Ganharam as terras como doação de seu antigo senhor e as venderam nos anos seguintes, em transações registradas em cartório. Mas o conflito não se restringe a pequenos produtores. Tome-se o caso da Aracruz, a maior exportadora de celulose do país, alvo constante dos sem-terra e de índios. Desde 2003, supostos quilombolas passaram a exigir a desapropriação de terras da empresa em 31 municípios de quatro estados. "A questão é bem mais preocupante do que a dos índios. Os índios vivem, em sua maioria, na Amazônia ou em áreas nativas, de preservação ambiental. Mas os quilombolas reivindicam terras que são ocupadas há anos por fazendas produtivas", afirma Carlos Alberto Roxo, diretor da companhia.

No Rio de Janeiro, até uma escola financiada pela organização católica Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência corre o risco de ser desapropriada a pedido de supostos remanescentes de um quilombo. A entidade afirma ter a posse do terreno, localizado no centro da cidade, desde 1704. Além disso, diz ter provas de que nunca houve nenhum quilombo na região. "Se quilombo é local de refúgio, como poderia existir um ao lado do porto do Rio, onde existiam muitos capitães-do-mato?", questiona Tatiana Brandão, advogada da entidade.

O próprio governo, que divulgou seus decretos com as intenções mais nobres, não esconde o uso da questão racial como instrumento para desapropriar terras, produtivas ou não. Afirma o presidente do Incra, Rolf Hackbart: "Não tenha dúvida: trata-se de uma reforma agrária paralela". Até o momento, já foram delimitadas 53 áreas, que somam 326.000 hectares. E há outros 492 processos correndo no Incra. Isso só de quilombolas. Mas há também os seringueiros, os caiçaras, os pescadores artesanais... Seria risível, se não fosse dramático.

Aviação Agora parou de vez

Parou de vez

No pior episódio de indisciplina militar desde 1963,
greve de controladores fecha todos os aeroportos
do país. Não há dia nem hora para a crise terminar


Fábio Portela

Leopoldo Silva/Folha Imagem
Aeroporto de Brasília, na sexta-feira negra: e o governo só sabe fazer reunião


Na mais óbvia evolução da incompetência com que o governo enfrenta o problema, o caos aéreo atingiu seu ápice na noite de sexta-feira passada. Às 21 horas, os 49 aeroportos comerciais do país estavam fechados para decolagens. Em um movimento coordenado, a maioria dos 2.500 controladores aéreos simplesmente cruzou os braços. Dezoito deles receberam voz de prisão do comandante da Aeronáutica e 200 permaneciam amotinados na sede do Cindacta I (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo), em Brasília, epicentro do maior vexame de gestão da história recente da administração federal brasileira. Quase 190.000 passageiros foram prejudicados pela paralisação.

A intenção dos controladores em greve – paralisar o espaço aéreo brasileiro – já podia ser antecipada em um manifesto divulgado pelo sindicato da categoria pela manhã. Às 17 horas, os controladores começaram a espaçar propositalmente os vôos. Às 18h40, todas as decolagens foram suspensas. Os controladores avisaram que iriam monitorar apenas os vôos que já estavam no ar. O Cindacta I controla os vôos nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Espírito Santo, São Paulo, sul do Tocantins e parte do sul de Mato Grosso, além do Distrito Federal. A paralisação dos controladores demorou poucos minutos para se espalhar por todos os aeroportos do país. Milhares de passageiros – como se tornou rotina nos últimos meses – enfrentaram filas e esperas intermináveis nos saguões, nas salas de embarque e dentro de aeronaves que esperavam autorização para decolar. A diferença é que, desta vez, os controladores nem tentaram disfarçar. Disseram, alto e bom som, que estavam em greve. Isso levou o comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, a ir pessoalmente ao Cindacta I dar voz de prisão a dezoito controladores grevistas, que são militares. Como reza a cartilha dos quartéis, o pessoal da farda é proibido de se envolver em movimentos grevistas. A desobediência dos controladores, que, até o fechamento desta edição, prosseguia sem controle, transformou a paralisação na maior rebelião da Aeronáutica desde 1963, quando sargentos dessa força tomaram a Rádio Nacional, cortaram as ligações telefônicas de Brasília e detiveram oficiais e um ministro do Supremo Tribunal Federal.

Com a operação-padrão que estava em andamento nos últimos meses, calculava-se em 5 milhões de reais o prejuízo das empresas com hora extra, alimentação e alojamento de funcionários. Agora que os aeroportos deixaram de funcionar de vez, essas perdas podem chegar a, no mínimo, 35 milhões de reais por dia. O valor se refere apenas à venda de passagens e não inclui o prejuízo dos passageiros e das empresas que utilizam o transporte aéreo de carga. Para se ter uma idéia do estrago causado por essa greve nos negócios, basta lembrar que 79% dos passageiros das companhias aéreas nacionais viajam a negócios.

Mas o que querem os controladores? Simples: forçar o governo a ceder às suas exigências – basicamente, desmilitarizar a carreira e aumentar seus salários. Depois do acidente entre o avião da Gol e o Legacy, em setembro, instalou-se no país a discussão sobre o que seria melhor: ter militares ou servidores civis nas torres de comando dos aeroportos. Hoje, há controladores dos dois tipos, que ganham salários diferentes e obedecem a regras antagônicas. O governo sinalizou que pretende uniformizar a situação, mas não disse que caminho seguirá. A falta de pulso do ministro Waldir Pires ante o caos aéreo deu a senha para que os controladores aproveitassem o vácuo de autoridade para deitar e rolar. No meio da noite, por exemplo, o grupo de controladores amotinados no Cindata I resolveu exigir a presença da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, no local – exatamente como fazem presidiários rebelados que tomam reféns e condicionam a negociação à presença de autoridades. Mas o refém, nesse caso, é o país inteiro.

Diante da crise, o governo pôde revelar mais uma vez toda a sua incompetência. Na noite de sexta-feira, montou às pressas seu gabinete de crise: reuniram-se no Palácio do Planalto o novo titular da pasta de Comunicação, Franklin Martins, o chefe-de-gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, e o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Como era de esperar, apenas bateram cabeça. O único ministro que interessava nesse caso, Waldir Pires, estava no Rio, de onde tentava se informar sobre a crise. Por ironia, Lula ficou sabendo do caos aéreo no país enquanto voava para Washington. Do Aerolula, único avião brasileiro que decola e pousa no horário, deu a sua solução: "É preciso que a Aeronáutica converse com os controladores". Não, não é piada. Os passageiros, enquanto isso, continuavam na mesma situação que as negociações: não conseguiam sair do lugar.

Atentado contra estudantes africanos em Brasília

Lambada racista

Atentado na UnB pode se resumir
a uma simples briga de vizinhos


Alexandre Oltramari

Fotos Marcelo Ferreira/CB
Alunas africanas que dormiam num quarto atingido: susto na madrugada


Na semana passada, vândalos atearam fogo às portas de três apartamentos ocupados por estudantes africanos no alojamento da Universidade de Brasília, a UnB. Ninguém ficou ferido. O incêndio criminoso, dada a origem das vítimas, tem sido tratado como um atentado racista. "É um incidente que nos enche de vergonha", disse o ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores. O Ministério Público pediu à polícia que investigasse os indícios de que o crime tenha sido um ato racista. Uma comitiva parlamentar também foi à universidade exigir providências. "São nazifascistas que colocaram fogo justamente nos quartos dos setores onde os negros africanos estavam hospedados", afirmou o deputado Doutor Rosinha (PT-PR). Estudantes fizeram manifestações contra o ato e, sem nenhum nexo com o ocorrido, aproveitaram para exigir mais verbas para a universidade. Pressionada, a UnB triplicou a segurança em suas dependências e transferiu para hotéis de Brasília todos os 22 estudantes africanos que vivem no alojamento. O reitor sugeriu que, a partir de agora, a data do incêndio seja lembrada como o dia da luta pela igualdade racial.

A indignação por um ato de conotação racista merece todo o repúdio e indignação. Mas, ao que tudo indica, o crime nada tem a ver com a cor da pele das vítimas. Há indícios de que por trás do incidente esteja apenas uma banal contenda entre vizinhos. Um ano atrás, ao retornar de madrugada para o seu alojamento na UnB, o universitário africano Adilson Fernandes Dias decidiu ouvir zouk, um ritmo musical caribenho, semelhante à lambada, muito popular nos países africanos de língua portuguesa. Um estudante brasileiro, Roosevelt dos Reis, reclamou do volume do som. Os dois brigaram e o brasileiro levou a pior. Ambos foram suspensos pela universidade, mas o clima ficou pesado no alojamento, que abriga 377 universitários brasileiros e 23 estrangeiros. Paredes foram pichadas com insultos generalizados. Um dos dormitórios incendiados era ocupado exatamente por Adilson Fernandes Dias, o africano que trocou agressões com Roosevelt dos Reis.

Estudantes da UnB protestam: racismo ou falta de dinheiro?

Apesar do barulho que se fez, nem as vítimas do ato de vandalismo acreditam que o motivo do incêndio seja racismo. Dos nove apartamentos ocupados por africanos, três foram atingidos. "Foi um conflito individual que se alastrou", diz o estudante africano Nivaldo Domingos Gomes, que pulou de uma altura de 3 metros para escapar das labaredas. "Quiseram atingir um ou dois de nós. Não existe uma ameaça contra negros aqui", conta Lenine da Silva, nascido na Guiné e aluno de ciências sociais. Há, de fato, um desconforto entre alguns estudantes brasileiros em relação à presença de estrangeiros no alojamento universitário. Acham que eles ocupam o lugar de brasileiros carentes. É uma evidência de que a discriminação no Brasil é motivada mais por razões econômicas.

Partidos A fidelidade partidária em julgamento

A caça aos infiéis

A decisão do TSE de que o mandato
é do partido aprimora a democracia


Ricardo Brito

Fotos André Dusek/AE
Arlindo Chinaglia (à esq.) e a deputada Jusmari Oliveira: incentivo à balbúrdia partidária



A deputada baiana Jusmari Oliveira está em seu primeiro mandato. Empossada há dois meses, ela ainda não apresentou um único projeto de lei, mas foi festejada na semana passada como a 37ª parlamentar a trocar de partido na atual legislatura. Jusmari deixou o partido dos Democratas (ex-PFL), pelo qual se elegeu, e assinou a ficha de filiação do Partido da República (ex-PL). A deputada pode ser a última infiel da história do Parlamento brasileiro. O Tribunal Superior Eleitoral, respondendo a uma consulta, decidiu na última terça-feira que o mandato de deputados federais, estaduais e vereadores pertence aos partidos, e não aos políticos. A prevalecer esse entendimento, os parlamentares não poderão mais trocar de legenda depois de eleitos – prática mais que comum observada nas últimas legislaturas do Congresso. A proibição marcaria o fim de um dos costumes mais degradantes da política brasileira, que tem servido apenas para alimentar o fisiologismo, desmoralizar o Parlamento e fragilizar o sistema político.

A exigência da fidelidade partidária é discutida há duas décadas, mas nunca houve disposição para implantá-la. Por uma razão simples: ela não interessa à maioria dos políticos. Sem a regra, parlamentares podem migrar à vontade da oposição para a situação, ou vice-versa, dependendo da conveniência do momento. Dos 37 deputados que mudaram de partido recentemente, 23 foram procurar abrigo em legendas comandadas pelo governo. "Não há como negar que, na base do governo, meus pleitos podem ser atendidos", explica a noviça republicana Jusmari Oliveira. Nas democracias tradicionais, a fidelidade partidária nem sequer é regulamentada por lei. Mudar de partido é algo incomum e danoso para a carreira de um político. É quase sinônimo de suicídio. No Brasil, não. Apenas na legislatura passada, 193 deputados migraram de uma legenda para outra sem maiores conseqüências. Existem casos espantosos como o de um deputado que mudou de partido nada menos que oito vezes. Para a grande maioria, a exemplo da deputada Jusmari, a infidelidade é questão de sobrevivência.

Estar alinhado com o poderoso do momento significa possibilidade de acesso a poder e dinheiro, através de cargos e emendas. Por isso, é comum as mudanças ocorrerem logo depois da eleição do presidente da República – e sempre em direção ao grupo dominante. A decisão do TSE ainda não é definitiva, mas é uma sinalização importante em direção à moralização do Parlamento. Em tese, os deputados que mudaram de legenda seriam obrigados a retornar ao antigo partido ou teriam o mandato cassado. O presidente da Câmara, o petista Arlindo Chinaglia, que poderia decretar a perda de mandato dos infiéis, já rechaçou a possibilidade de mudanças. Segundo ele, a decisão do tribunal não tem aplicação imediata. Os partidos prejudicados, por sua vez, já anunciaram que irão ao Supremo Tribunal Federal pedir a cassação dos infiéis e a posse dos respectivos suplentes. "Será uma longa batalha judicial", disse Chinaglia, tranqüilizando os traidores ameaçados. Para anular os prováveis efeitos da interpretação do TSE, a turma do troca-troca já articula a votação de uma emenda constitucional que regulamenta a fidelidade partidária. A idéia em discussão é obrigar os parlamentares – valendo apenas para os eleitos a partir de 2010 – a permanecer no partido no mínimo por três anos. No último ano de mandato, eles poderiam trair uma vezinha só. Afinal, ninguém é de ferro. Muitos são até caras-de-pau.

Trevisan denunciado por ex-companheiros

Sob suspeita

Fundador de uma ONG contra a corrupção,
Trevisan agora é alvo da própria ONG


Ronaldo França

Marcelo Ximenez/AE
Trevisan: parentes beneficiados em licitação

O empresário Antoninho Marmo Trevisan já viveu situações explosivas. Foi acusado de usar a amizade com Lula para conquistar clientes no governo, foi coadjuvante de peso no episódio em que a Telemar se associou ao filho do presidente para criar a Gamecorp. Há duas semanas, sua empresa foi multada pelo Banco Central em 500.000 reais por falhas de auditoria que inflaram os resultados no balanço do Banco Mercantil Finasa. Apesar de chamuscada, sua biografia escapou da incineração. Em parte porque, nos anos 90, Trevisan ajudou a fundar, em sua terra natal, Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, a ONG que se tornou referência no combate à corrupção na administração pública. Depois de cassar um prefeito local, a Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo) passou a prestar assessoria a cidades do Brasil inteiro. Por isso é tão surpreendente que parta justamente da Amarribo uma acusação que atinge Trevisan em cheio. A ONG protocolou no Ministério Público do Estado de São Paulo uma denúncia de direcionamento em licitação municipal para a elaboração do projeto de uma escola. O vencedor da concorrência foi o cunhado de Trevisan. Disputaram com ele a filha de um vizinho do empresário em São Paulo e um escritório de arquitetura associado ao paisagista que remodelou os jardins de sua casa. Trevisan é citado nominalmente na denúncia.

Paulo Pinto/AE
Cunha: promessa de verbas federais e uso oportunista do nome da ONG


A Amarribo também suspeita de fraude na documentação. As fichas de cadastro de duas das empresas foram baixadas dos computadores da Receita Federal com 43 segundos de diferença uma da outra. "Há indícios que precisam ser investigados", afirma o promotor Marcel Zanin Bombardi. A responsabilidade pelo processo de licitação é do prefeito Rubens Gayoso, do PT. Mas Trevisan pode ser considerado seu fiador político. Apoiou sua candidatura e foi um dos principais financiadores de sua campanha. O apoio de Trevisan a Gayoso constrangeu os membros da ONG, que fizeram vários alertas sobre a conduta do prefeito. Gayoso já responde a outras duas ações. Uma por fraude na prestação de contas eleitorais e outra por licitação fraudulenta. Mas a ruptura se deu quando a Amarribo cobrou transparência na prestação de contas dos gastos do prefeito, que se recusou a mostrar os documentos sem decisão judicial. Trevisan, que preside o Conselho do Prêmio Nacional de Gestão Pública, criado para estimular boas práticas de gestão, apoiou as negaças do prefeito e se afastou da ONG. Acusou-a de ter se distanciado de seus objetivos. "Ele é que traiu os princípios da Amarribo", afirma o presidente da entidade, Sérgio Ronco.

Pesa também sobre a prefeitura a suspeita de desvio de recursos federais. A Amarribo solicitou à Controladoria-Geral da União uma perícia em obra feita com recursos do Ministério da Integração Nacional. Avaliada em 2,5 milhões de reais, a obra não teria custado 500.000 reais. Na última campanha eleitoral, o deputado petista João Paulo Cunha, amigo do empresário, usou o nome da Amarribo em panfleto. Apresentou-se como o homem que obtém verbas federais para a cidade. Na semana passada, um ex-assessor de Cunha, abrigado nos quadros da prefeitura, fez ameaças veladas a um funcionário da ONG. Tudo isso jogou ainda mais lenha na fogueira em que o relacionamento de Trevisan com a Amarribo vinha sendo queimado. Procurado por VEJA, Trevisan disse que não teve sequer conhecimento da licitação objeto da denúncia da Amarribo.

Rabino Henry Sobel é preso por furto

Transtornado

Preso na Flórida por furtar gravatas de grifes
famosas, o rabino Henry Sobel sofre de
"transtorno de humor", segundo os médicos


Juliana Linhares

Os religiosos brasileiros sofreram um choque na quinta-feira passada. Revelou-se um fato constrangedor envolvendo o rabino Henry Sobel, um dos mais visíveis líderes do diálogo inter-religioso no Brasil.

Sobel, de 63 anos, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP), foi detido em Palm Beach, na Flórida, sob acusação de ter furtado, de diferentes lojas, gravatas de marcas famosas. A prisão ocorreu no dia 23, mas sua notícia só chegou ao Brasil na quinta-feira passada. Sobel passou 21 horas na prisão e teve sua foto colocada no site do condado da polícia de Palm Beach. No Brasil, procurado por repórteres, o rabino inicialmente negou o episódio e chegou a afirmar que a foto publicada no endereço eletrônico da polícia não era a sua. Horas mais tarde, pediu afastamento temporário da CIP – à frente da qual recebia um salário de cerca de 30.000 reais por mês – e, em seguida, foi internado no Hospital Israelita Albert Einstein. De acordo com boletim médico divulgado pelo hospital na sexta-feira, o rabino apresenta "transtorno de humor, descontrole emocional e alterações de comportamento". O texto sugere que o quadro teria sido causado pela ingestão excessiva de medicamentos contra insônia.

Segundo informações da polícia americana, Sobel foi flagrado por câmeras da loja Louis Vuitton – localizada na Worth Avenue, uma das mais elegantes da cidade – escondendo no bolso uma gravata. Momentos depois, policiais que o abordaram nas imediações da loja revistaram seu carro e nele encontraram uma sacola com outras quatro peças – das grifes Giorgio's, Gucci e Giorgio Armani. Ainda de acordo com a polícia, Sobel admitiu ter levado os produtos sem pagar por eles. Ao todo, as peças custavam 680 dólares, ou cerca de 1.400 reais. Depois de passar a noite em uma cela com capacidade para até 64 detentos, o rabino pagou uma fiança de 3.000 dólares e foi autorizado a voltar ao Brasil. Sua primeira audiência na Justiça americana está marcada para o próximo dia 23. Um juiz deverá ouvir, além dele, o lojista que o identificou no vídeo e o policial que o prendeu. Novas audiências poderão ser marcadas se, por exemplo, a defesa do rabino apontar a necessidade de ouvir mais testemunhas. A advogada Maristela Basso, especialista em direito internacional, acredita, no entanto, que a sentença sairá nesse primeiro encontro em razão da pequena gravidade do crime e dos bons antecedentes do réu. Em diversos estados americanos, a pena para crimes do gênero é a prestação de serviços comunitários.

Pedro Martinelli
Felici/Pontificia Fotografia
Sobel com João Paulo II, no Vaticano; à direita, com dom Paulo, no culto inter-religioso em memória de Herzog

A prisão de Sobel, incluindo a tentativa do líder religioso de encobrir o episódio, não chocou apenas a rica e influente comunidade judaica de São Paulo. O rabino Henry Sobel – nascido em Lisboa, naturalizado americano e residente no Brasil há 37 anos – tornou-se uma referência do diálogo inter-religioso no país desde que, em 1975, subiu ao altar da Catedral da Sé, em São Paulo, para, ao lado do então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, celebrar um culto em memória do jornalista Vladimir Herzog. Dias antes, ele havia se recusado a sepultar o jornalista como suicida, numa contestação aberta à versão do regime militar, que não admitia ter torturado Herzog até a morte. Não foi seu único gesto de grandeza. Entre o fim da década de 70 e o início da de 80, Sobel participou de um projeto secreto encabeçado por dom Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright que visava à reunião de depoimentos de vítimas de tortura durante o regime militar brasileiro. O projeto resultou na publicação, em 1985, do livro Brasil: Nunca Mais. Sobel também deu ao país um exemplo de tolerância e boa vontade ao visitar, em 1996, o então presidente da Autoridade Nacional Palestina, Yasser Arafat, em Gaza.

No seio da comunidade judaica, o rabino nem sempre foi visto como um agregador. Sete anos atrás, uma divergência entre ele e o então presidente executivo da CIP, Mário Adler, dividiu a congregação e quase o levou a perder o cargo, que já ocupa faz dez anos. Embora a briga tenha se tornado pública, seus motivos permanecem na esfera privada dos contendores. Muitos de seus desafetos o acham galante demais. Sobel é casado há 31 anos com a artista gráfica americana Amanda Tasch Sobel, com quem tem uma filha, Alisha, de 24 anos. Nenhuma delas estava nos Estados Unidos quando o rabino foi preso.

Amigos próximos de Sobel afirmam que ele sofre, há dois anos, da doença de Parkinson. O mal já estaria em estágio avançado, e os tremores viriam causando desconforto em público ao rabino. Segundo esses amigos, Sobel toma um coquetel que incluiria, além de medicamentos contra a doença, antidepressivos e remédios para tratar de uma hérnia de disco e de uma insônia crônica. O boletim médico do Hospital Einstein enfatiza o estado de transtorno comportamental do rabino Sobel e o relaciona com os remédios que ele ingere. Caberá à Justiça da Flórida decidir se o furto das gravatas pode ser inteiramente explicado pelas interações químicas. Como religioso, Sobel se submeterá a outros julgamentos: o da própria consciência e o da sua grei. Qualquer que seja a verdade, o episódio vivido por Sobel entristece judeus e não-judeus – e assinala o que pode ser o fim melancólico de uma trajetória marcada pela dedicação e pela tolerância.

Com reportagem de Wanderley Preite
Sobrinho e Naiara Magalhães

FICHADO – Boletim de ocorrência da polícia de Palm Beach: inicialmente, o rabino negou o furto da gravata. Depois, ofereceu-se para pagar por ela. Por fim, admitiu que havia "pego" a peça na loja da Louis Vuitton sem pagar