domingo, fevereiro 25, 2007

MERVAL PEREIRA -Democracia adjetivada

A democracia representativa está em crise no mundo todo, e a democracia direta, que surge aqui na nossa América do Sul como uma solução manipuladora de esquerda, é apoiada por uma instituição direitista britânica como maneira de ampliar a participação popular e aumentar o interesse dos eleitores nos processos decisórios. O Centro para Estudos Políticos de Londres sugeriu semana passada que todo cidadão deveria ter direito de iniciar uma legislação através de referendos, o que já acontece em 24 estados americanos e em alguns países europeus, sendo o mais citado a Suíça. Apesar de ter sido apresentada por um think tank direitista, a sugestão foi apoiada pelo líder trabalhista David Cameron, e o provável futuro primeiro-ministro, Gordon Brown, também não quis ficar contra.

Aqui no Brasil, com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil e do jurista Fabio Konder Comparato, o ministro Tarso Genro montou uma proposta de reforma política que abriga uma antiga tese sua, que defende em seu livro “A esquerda em progresso”, já analisado aqui por diversas vezes: a democracia direta à la Hugo Chávez, com a “exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação”. O que nasceu como uma proposta do governo, e gerou muitas críticas, acabou sendo transformado em uma sugestão que será levada aos partidos políticos, na esperança de que algum deles adote as sugestões.

No Congresso, um grupo de deputados petistas, entre eles José Mentor, envolvido no escândalo do mensalão, apresentou uma proposta para que o presidente da República possa propor um plebiscito sem a intermediação do Congresso. Ele, que teoricamente é um congressista, acha que se o presidente da República pode editar medidas provisórias, por que não poderia também convocar plebiscitos? Dificilmente o Congresso assumirá propostas tão polêmicas, que já levam certos setores políticos a temer que esteja em marcha uma manobra para tentar aprovar, através de plebiscito, maiores poderes para o governo Lula, ou até mesmo a possibilidade de disputar um terceiro mandato presidencial.

O fato é que a crise em que o Congresso brasileiro está afundado favorece o questionamento da democracia representativa, que já está em curso em alguns países da América do Sul, como na Venezuela e na Bolívia.

Há, por outro lado, a insatisfação dos liberais com a democracia de massa, que seria passível de manipulação por políticos populistas, e por isso cresce o movimento para que o voto deixe de ser obrigatório, na suposição de que, com o voto opcional, somente os que estivessem interessados realmente nas questões políticas se empenhariam em votar, reduzindo a possibilidade de manipulação.

Nessa tentativa de superar as deficiências do modelo de representação em vigor, a utilização de instrumentos de consultas populares, como os plebiscitos, une esquerda e direita, uns se inspirando na experiência de Chávez na Venezuela, outros no modelo dos Estados Unidos. Na Suíça, desde 1849, já foram realizados cerca de 150 referendos e plebiscitos nacionais, diversos outros nos 26 cantões e muito mais nas cerca de três mil comunas do país.

Nos Estados Unidos, os referendos e plebiscitos são apenas locais, nos estados e municípios, tratando desde despesas ou impostos, até sobre a pena de morte ou casamento entre homossexuais.

Quanto maior o país, menor a possibilidade de haver plebiscitos ou referendos nacionais. Geralmente os temas são locais, e na Inglaterra a proposta de ampliação dos referendos está sendo criticada exatamente pela tendência centralizadora do governo.

O cientista político Bolívar Lamounier, que desconfia das intenções dos que propõem essa democracia direta no país, afirma que essa utopia tem muito pouco de “direta”: “A possibilidade de manipulação é inerente ao instrumento, pois a autoridade incumbida de propor os quesitos pode ficar muito aquém da neutralidade”. Ele ressalta que “desde que começaram a serem realizados, há cerca de dois séculos, plebiscitos e referendos foram quase sempre um jogo de cartas marcadas, com o objetivo de legitimar decisões autoritárias, ratificar ocupações de território alheio, e assim por diante”. É no que tem se transformado esse instrumento nos países vizinhos, com plebiscitos dando poderes quase totais aos governantes, chegando na Venezuela a dar a Hugo Chávez um mandato de autonomia completa em relação aos demais poderes.

Em diversos textos, o provável futuro ministro da Justiça do segundo mandato de Lula, e atual articulador político, aborda a falência da democracia representativa e defende a organização de um novo Estado com “outras formas de participação direta, por meio de instituições conselhistas, que emergem da democracia direta”. Entre esses, ele cita especificamente o controle dos meios de comunicação através de “conselhos de Estado”. O ministro culpa “o ritualismo democráticoformal” como uma das causas da decadência do modelo representativo atual.

Com a reforma política na pauta da Câmara por decisão voluntarista do novo presidente, Arlindo Chinaglia, temas mais próximos dos deputados estarão em discussão, como o voto em lista e o financiamento público de campanha eleitoral.

Antes de afoitamente dar por encerrada a experiência da democracia representativa, é preciso organizar nosso sistema político-partidário.

A volta das cláusulas de barreira, proposta pelo senador Marco Maciel, e a fidelidade partidária, seriam um bom início de conversa.