quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Clóvis Rossi - De Meca e de lucros

Folha de S. Paulo
1/2/2007

Um dos grandes trunfos do capitalismo (e do Ocidente, seu quartel-general) é a imensa capacidade de digerir adversários e até inimigos e devolvê-los ao grande público como produtos, como "business".
O exemplo mais antigo é o da efígie de Che Guevara. Vivo, era um combatente anticapitalista. Morto, virou imagem em t-shirts e lucro para os fabricantes.
Exemplo mais imediato está na página A9 da Folha de ontem: um jovem libanês banhado em sangue depois de cortar a cabeça com a espada na Ashura, o ritual que marca o martírio do neto do profeta Maomé. O sangue soará como aberrante para boa parte dos ocidentais (a mim não, desde que não custe sangue alheio).
Mas o respeito ao ritual ancestral não impede que o jovem, ainda ensangüentado, fale ao celular, hoje o mais disseminado símbolo do consumismo (em tese a antítese do martírio) e da capacidade de veloz e até feroz renovação das tecnologias no Ocidente.
Não é caso único: o jornal espanhol "El País" relata o avanço na Europa dos produtos "halal" (lícitos segundo os preceitos do islamismo). À primeira vista, é o triunfo da tradição sobre o modernismo (suposto ou real) representado pelos métodos ocidentais.
Mas, à segunda vista, o "boom" do "halal" é fruto do desejo da terceira geração de islamistas na Europa de, em mantendo tradições, poder consumi-las nos supermercados, como qualquer europeu, em vez de ser obrigado a fazê-lo em pequenas lojas de pequenos guetos.
Aí surge o espírito animal do capitalismo para atendê-los. Lógico: a fatia de mercado para esse tipo de produto é de US$ 18 bilhões.
Até porque não há fiscalização suficiente para saber se o frango, por exemplo, foi degolado olhando para Meca, uma das condições para ser "halal". A meca para a qual olha o capitalismo é o lucro.