O Estado de S. Paulo |
24/1/2007 |
É verdade que o papel aceita tudo. É verdade que as palavras voam. É verdade que os políticos costumam esquecer hoje o que disseram ontem. É verdade ainda que, no limite, contam os fatos. Mas é verdade também que, para o bem ou para o mal, a fala de um governante - ainda mais quando a sua popularidade é maior do que a de qualquer de seus antecessores, até onde a memória alcança - tem um potencial simplesmente extraordinário de inspirar uma sociedade a acolher novos valores ou a consolidar a sua adesão a outros, conhecidos, mas não necessariamente consagrados. A aptidão do chefe de governo em colocar a voz a serviço de uma pedagogia mobilizadora é indicador seguro de sua capacidade de liderar. É impossível, por exemplo, subestimar o papel do então presidente Fernando Henrique - quaisquer que tenham sido os motivos que o fizeram descer a rampa do Planalto sob o peso do desapreço popular - em atrair a opinião pública para a idéia de que a estabilidade da moeda é um valor nacional. Já a força do prestígio sem paralelo de Lula nasceu do fato de ser ele próprio símbolo de um valor universal: o da superação da adversidade. Agora, porém, o presidente conquistou o direito de reivindicar aquele gênero de liderança que se costuma atribuir aos governantes quando ousam propor aos governados um horizonte de convicções, revestindo com material mais nobre os triviais pedidos de apoio ao que apresentam como a razão de ser dos seus mandatos. Foi o que Lula fez na manhã de segunda-feira, ao anunciar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que a seu ver se encaixa nessa categoria, como deixou claro. E assim pronunciou o melhor discurso de sua Presidência. Melhor não porque tenha abalado o ceticismo dos críticos do governo, ou porque tenha demonstrado contar com um patrimônio financeiro, administrativo e político capaz de garantir a sua travessia segura no curso dos próximos quatro anos. A julgar pelos jornais de ontem, ele não parece ter conseguido nem uma coisa, nem outra. Mas o que conseguiu - e isso dá à sua fala, de resto providencialmente breve, uma grandeza incomum - foi associar progresso econômico e social à implantação de “uma nova cultura de produção e trabalho que reforce os valores fundamentais da sociedade brasileira”. O mote “crescer mantendo e ampliando as liberdades civis e os direitos democráticos” foi um sopro de vento forte que deve ter despenteado as expectativas dos que se haviam resignado de antemão a ouvir, em meio ao jargão duplamente pedregoso do economês e do burocratês, os auto-elogios do orador e o desfile de realizações nunca antes vistas neste país. Pois Lula não só poupou o País dessa servidão, como tampouco se limitou a repetir que desenvolvimento é antes de tudo desenvolvimento humano, um valor aceito o bastante a ponto de servir como índice da ONU. Original, ele pôs na mesa, entrelaçados, os valores da ética do trabalho (“cultura produtiva”), da eqüidade social (“um novo humanismo”) e os da singular ordem política que lhes infunde um sentido de futuro (“aqui não se cresce sacrificando a democracia”). Ao afirmar o primado pleno da democracia (“pouco me interessaria um aumento expressivo do PIB se isso implicasse, o mínimo que fosse, redução das liberdades democráticas”), Lula apartou o seu governo e o Brasil dessa versão perversa da luta contra as injustiças sociais na América Latina chamada chavismo. Com isso, o presidente também se dirigiu aos que o criticam pelos magros índices brasileiros de crescimento, comparando-os aos do colosso chinês - onde o PIB cresce vertiginosamente sem liberdades civis e direitos democráticos para atrapalhar e onde se fortalece a economia “enfraquecendo o social”. A definição inconfundível do lugar do Brasil no mapa ideológico latino-americano e a demarcação do contraste com o capitalismo selvagem da China são os aspectos políticos mais ostensivos da oração de Lula, mas não exatamente os que a levam ao topo do pódio. O salto olímpico está na sua referência ao novo humanismo. Eis uma expressão que caiu em desgraça na era do chamado turbocapitalismo, sob o qual o êxito econômico, obtido não importa como, é a medida de todas as coisas, para pessoas, classes, regiões e países. Pouco importa a conseqüência esperada desse retrocesso histórico - o aumento da desigualdade global, entre as nações e dentro das nações. Raro na retórica dos governantes convencionais, o termo evoca a solidariedade social que o império do mercado sem freios também trata como um fóssil do Jurássico. Quando um presidente brasileiro com a aura de Lula resgata a palavra humanismo, dando-lhe um valor de cultura cívica na mesma escala do trabalho produtivo e da democracia, chama a atenção de uma sociedade que não prima pela coesão social, nem pela crença na separação entre o público e o privado, para um corpo de idéias morais que devem ser “o motor para transformar o País”. É a sua réplica à “retórica da desesperança”. Não é pouco. P.S. - A propósito dos países emergentes que deixam o Brasil para trás e qualquer coisa parecida com humanismo também, o jornalista americano Edward Luce acaba de publicar Apesar dos deuses: a estranha ascensão da Índia moderna (Random House, 400 páginas, US$ 26). O livro mostra um país onde 300 milhões do seu 1,1 bilhão de habitantes vivem em situação de miséria absoluta e onde até eles são extorquidos por uma das mais corruptas burocracias do mundo. Luce conta o caso da favelada de Nova Délhi em busca do cartão que lhe permitiria comprar trigo a preço subsidiado. Ela precisou pagar a um funcionário para receber o formulário (em inglês) e a outro para preenchê-lo (porque ela não conhece o idioma). No armazém, viu que o trigo que ia comprar estava mofado e infestado de insetos: o dono da loja tinha vendido no mercado negro o trigo bom recebido do governo. |