Crescimento se destrava com reformas profundas, a começar pela primeira que o PAC negou: a da Previdência"
Não é que a dívida seja insustentável, é o ritmo de crescimento do gasto que é insustentável"
O ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore rechaça a possibilidade o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) fazer a economia brasileira avançar 4,5% neste ano e 5% a partir de 2008. Um dos principais pecados do plano, para ele, é não enfrentar o aumento explosivo dos gastos não financeiros do governo federal, que avançaram a uma taxa anual de 9,7% acima da inflação no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se o crescimento das despesas públicas não for contido, adverte, não há espaço para diminuir a carga tributária, o que impede o avanço mais robusto do investimento privado.
Pastore lamenta a decisão do governo de nem tentar promover reformas que ele considera fundamentais para o equilíbrio estrutural das contas públicas. "Crescimento se destrava com reformas profundas, a começar pela primeira que o PAC negou: a da Previdência", diz ele.
Mas as críticas de Pastore não se limitam à ausência de medidas que enfrentem a situação fiscal do país. O ex-presidente do BC também nota que o PAC não menciona em nenhum momento a educação, cuja melhora seria crucial para elevar a produtividade na economia. "Eu vi muita discussão sobre o assunto na campanha eleitoral. Mas, depois que acabou a campanha, tábula rasa, nada."
Pastore acredita que o PIB vai crescer neste ano 3,6%, mais do que os 2,8% estimados para 2006. Essa aceleração, porém, nada tem a ver com o PAC, diz ele. A existência de capacidade ociosa na economia e a queda dos juros reais é que devem impulsionar a atividade econômica, mas não o suficiente para atingir os 4,5% previstos no pacote. "O governo quer resolver o problema do crescimento por hipótese."
O economista, que em 2006 questionou decisões de política monetária, desta vez elogia o BC. "A minha crítica à política monetária nunca foi em relação à essência, mas sim ao timing e à intensidade, por diferenças de visão sobre a situação da atividade econômica." Segundo ele, a atuação do BC ajuda mais na expansão da formação bruta de capital fixo (FBCF, que mede o investimento na construção civil e em máquinas e equipamentos) do que o PAC. Uma inflação baixa e menos volátil aumenta a previsibilidade na economia.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: O governo está convencido de que o país pode crescer 4,5% neste ano e 5% a partir de 2008. Há motivos para justificar o otimismo?
Affonso Celso Pastore: Isso me lembra uma piada contada pelo o Paul Samuelson (ganhador do Nobel de Economia em 1970). Um navio naufraga e um químico, um físico e um economista vão para uma ilha deserta, onde não há comida. Por sorte, encontram um caixote cheio de latas de ervilha. Eles começam então a debater qual é o melhor modo de abrir as latas. O físico diz: "Vamos bater na lata com uma pedra para abri-la". O químico tem outra idéia: "Vamos esquentá-la até explodir". O economista, por sua vez, diz: "Vamos supor que nós temos uma abridor de latas". É o que faz o PAC: resolve o problema do crescimento por hipótese. Não se ataca a questão expansão dos gastos públicos. No primeiro mandato do presidente Lula, as despesas não financeiras do governo federal cresceram 9,7% ao ano acima da inflação. Hoje, esses gastos equivalem a 19% do PIB. Com o aumento do salário mínimo e com mais 0,5% do PIB do Projeto Piloto de Investimentos (PPI), as despesas deverão continuar a crescer perto dessa taxa. Se o crescimento for de 3,7% - uma bela taxa para o Brasil, um ponto percentual a mais do que avançou o PIB potencial nos últimos 25 anos -, isso significa que esses gastos vão crescer 6% ao ano a mais do que o PIB. Nesse ritmo, dobrariam em pouco mais de 11 anos, atingindo 38% do PIB. Isso obviamente não é sustentável. Mesmo assim, o governo quer continuar a aumentar o gasto. Se você supõe que o PIB está crescendo mais rápido, isso não cresce tão depressa, e por hipótese se resolve o problema. O governo encontrou um modo de aumentar os gastos dentro de um programa que supostamente acelera o crescimento.
Valor: O programa não vai então acelerar o crescimento?
Pastore: Para crescer mais, é necessário fazer duas coisas: aumentar a formação bruta de capital fixo e elevar a produtividade total dos fatores. Não é um problema de demanda, de distribuição de renda, de nada disso. Pense num bolo, que você chama de PIB, com três fatias. Há a fatia do setor externo, que é a conta corrente, a fatia do gasto do governo e a fatia do setor privado, dividida entre consumo e investimento. Se você quer manter o superávit em conta corrente e não reduz o tamanho do governo, sobra para o consumo e o investimento privados uma fatia menor. Há apenas um modo para essa fatia do setor privado crescer: ou o governo reduz o seu tamanho ou você vai ter que fazer déficit em conta corrente. O governo decidiu que não reduz seu tamanho. Não vai fazer a reforma da Previdência. Criou uma comissão, num fórum nacional, para ver se há consenso sobre o assunto, que eu acho que nunca vai haver. Ou alguém toma a decisão de impor uma regra, tentando aprovar no Congresso, ou não tem como fazer, porque sobre isso não vai haver consenso. O salário mínimo está indexado à inflação mais um crescimento, assim como os gastos com os funcionários públicos. Apesar de um ou outro ponto de renúncia fiscal do programa, isso significa que a carga tributária é do nível atual para mais. Se tudo der certo, ela continua no patamar atual. Se a carga tributária é daqui para mais, o espaço que sobra o setor privado é daqui para menos. Nós não podemos imaginar que haverá um crescimento forte da formação bruta de capital fixo.
Valor: O diagnóstico do PAC para destravar o crescimento está errado?
Pastore: Crescimento se destrava com reformas profundas, a começar pela primeira que o PAC negou: a da Previdência. Você também precisaria investir em infra-estrutura com o setor privado, melhorando o marco regulatório, tirando o risco regulatório. O PAC decidiu não fazer isso. O PAC decidiu estatizar a energia elétrica. Um pouco antes do PAC, o governo saiu com aquela pérola de que não haveria mais licitação para a concessão de estradas para a iniciativa privada, porque o custo seria muito alto. Sabe por que o custo é muito alto? Porque o risco regulatório é muito alto.
Valor: O governo diz que vai se empenhar em aprovar das agências reguladoras. Isso seria suficiente?
Pastore: Vamos ver o que sai nessa aprovação da lei, qual é o texto, o que está lá dentro. Anunciar que há uma lei de agências é uma coisa, ver o texto é outra.
Valor: O governo decidiu indexar os salários dos funcionários públicos e o salário mínimo, apresentando essas medidas como medidas fiscais de longo prazo. O sr. acha que essas despesas vão crescer menos que o PIB ou mais que o PIB?
Pastore: Até aqui, elas sempre cresceram mais do que o PIB. Vamos ver como essa regra funciona. O reajuste do salário de funcionário público teria que obedecer o orçamento. O governo definiu essa regra, dizendo que é para colocar ordem, dentro da suposição de que nós vamos crescer 4,5% neste ano e 5% nos anos seguintes. Se isso ocorrer, cai com relação ao PIB. Mas está se esquecendo que há uma lei de crescimento autônomo da folha de pagamentos. Há qüinqüênio, sexta-parte, promoção, o funcionário público não é avaliado pela sua eficácia ou pelo seu mérito, mas pelo tempo de serviço. Depois de ter visto 100 anos de crescimento vegetativo da folha, você acha que eu posso sonhar que daqui para frente essa expansão explosiva vá se alterar, por causa de uma regra de indexação?
Valor: E a lei que reajusta o salário mínimo?
Pastore: Nós deveríamos estar cuidando de aumentar a produtividade da economia para deixar os salários crescerem, mas nós resolvemos reajustar o salário mínimo, sem pensar em produtividade. O PAC é supostamente um programa de longo prazo de crescimento e nós precisamos aumentar a produtividade total dos fatores, mas você viu alguma palavra sobre educação, sobre treinamento de mão-de-obra? Esses dois fatores são fundamentais para melhorar a produtividade, mas não há nenhuma referência a eles no PAC. Eu vi muita discussão na campanha eleitoral. Mas, depois que acabou a campanha, tábula rasa, nada. A produtividade vai crescer endogenamente porque o setor privado tem o estímulo da globalização, é necessário competir com a China, com os EUA. Como a taxa de juros real caiu, o custo de oportunidade do capital ficou menor, o que induz a algum investimento, a algum crescimento de produtividade. Por isso, acho que aumenta alguma coisa, mas será um crescimento pequeno.
Valor: Qual a expectativa do sr.. para o crescimento neste ano e nos próximos?
Pastore: Neste ano nós vamos crescer mais do que no ano passado. Há capacidade ociosa na economia e se reduziu o custo de oportunidade do capital. A taxa de juro real média de 2007 vai ser bem menor do que a de 2006. Há um pouco mais de formação bruta de capital fixo, que cresceu, mas o avanço ainda é insuficiente. Talvez isso fizesse escalar o crescimento potencial para pouco mais de 3%. Como vai ser possível absorver capacidade ociosa, o PIB pode crescer 3,5%, 3,6% em 2007. Eu já vi economistas respeitáveis, com boa capacidade de fazer modelos, chegarem a 3,8% para este ano. Eu não sei se vai chegar a 3,8%, mas eu diria que absorvendo capacidade ociosa, com crescimento de demanda, não é uma projeção disparatada, embora a minha estimativa seja menor do que essa. A minha é de 3,6%, que não é uma taxa desalentadora em relação aos 2,8% de 2006. Mas eu não vejo 4,5%, não com o PAC, e muito menos eu vejo 5% para os anos seguintes. Volta ao meu ponto inicial. Nós estamos resolvendo o problema por hipótese. Nós estamos no caso da piada do Paul Samuelson.
Valor: Essa aceleração do crescimento que o sr. espera para este ano tem alguma coisa a ver com o PAC?
Pastore: A minha projeção de 3,6% foi feita muito antes de saber que haveria o PAC. Eu não vejo nada de novo que possa mudar esse cenário.
Valor: Outra parte do PAC são as desonerações tributárias, de R$ 6,6 bilhões. Isso é suficiente para estimular o investimento privado ou o sr. preferiria cortes de impostos lineares, que beneficiassem a todos?
Pastore: Quem tem mais poder de lobby grita mais e obtém uma desoneração. É um exemplo de medida discricionária. O governo olha para um setor, gosta da cara dele e desonera. O sistema que funciona melhor nos países que conseguem crescer é aquele em que se generaliza o acesso de poder crescer para todo mundo. Mas isso é um preceito neoliberal, e eu tenho impressão de que o simples enunciado dessa expressão já causa arrepios no Palácio do Planalto inteiro, até nas paredes. Se nós quisermos a sério atacar a sério o problema do crescimento, é necessário controlar os gastos do governo e, a longo prazo, ir reduzindo a carga tributária. Esse é o modo de evitar esse crowding out (fenômeno pelo qual os gastos do governo ocupam espaço do setor privado) em cima do investimento privado.
Valor: Com o PAC, o que vai ocorrer com a carga tributária?
Pastore: Se o PIB crescer 5% ao ano, ela não aumenta, mas se o PIB crescer menos, aumenta. Na aritmética do governo ela não aumenta por hipótese. Na minha aritmética ela aumenta de fato. O efeito sobre o setor privado continua sendo o crowding out do investimento. A formação bruta de capital fixo só vai crescer porque o Henrique Meirelles (presidente do BC) ajudou com a política monetária, não por causa do PAC.
Valor: O sr. chegou a criticar a condução da política monetária no passado. Agora o sr. faz um elogio a ela. Por que essa inflexão?
Pastore: A minha crítica à política monetária nunca foi em relação à essência, mas sim ao timing e à intensidade, por diferenças de visão sobre a situação da atividade econômica. Acho que eu estava mais certo do que o BC. Eles apostaram que o crescimento do ano passado seria de 4%, e a minha aposta era de que seria menor que 3%. A não ser que o BC seja salvo por uma revisão do PIB que prove que eu estou errado e eles estão certos, mas isso é difícil. Com a inflação abaixo da meta, o hiato de produto não pode estar se estreitando. Mas não há outra crítica a não ser essa. É uma questão que muda a distribuição temporal da taxa de juros e a distribuição temporal do crescimento. Eles foram extremamente hábeis e muito sérios na condução da política monetária. Se o governo inteiro fosse tão competente quanto o BC, o resultado da política macroeconômica seria muito melhor do que tem sido.
Valor: O governo pretende aumentar o investimento público pela redução do superávit primário, o que vai fazer a relação dívida/PIB cair mais lentamente. Isso pode afetar a trajetória de queda dos juros?
Pastore: A coisa é um pouco mais complicada. Como a taxa de juro caiu, há uma redução da componente de juros no déficit total. Com isso, a pressão líquida do governo sobre a sociedade não cresce com a queda do superávit primário, e a relação dívida/PIB continua caindo. Isso não tem interferência na política monetária. A questão é que, com essa velocidade de crescimento de gasto, nós vamos ter uma crise fiscal lá na frente. Isso não é sustentável. O meu problema não é com a relação dívida/PIB ou com o que liquidamente o governo está injetando de demanda no sistema, porque ele está gastando mais, mas também está tirando demanda ao arrecadar mais. Temporariamente isso sobrevive, o BC vai continuar baixando os juros, na velocidade tecnicamente recomendável, mas se os gastos seguirem crescendo, vão bater em algum limite. Não é que a dívida seja insustentável, é o ritmo de crescimento do gasto que é insustentável. Ele só pode ser sustentado com aumento de carga tributária maior do que essa que está aí. É impensável que possa se sustentar esse crescimento de gastos, mas nós estamos vendo que as medidas forçam os gastos para cima. A resposta que o governo dará a essa minha aritmética é que eu estou errado porque o crescimento do PIB vai ser 5%, quando na verdade eu digo que ele só vai ser 5% por hipótese. A relação dívida/PIB vai cair, mas não será possível financiar esse crescimento de gastos