quarta-feira, janeiro 24, 2007

O descompasso entre o discurso e a carpintaria


editorial
O Estado de S. Paulo
24/1/2007

O que mais chama a atenção no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é o descompasso entre a sua concepção política - descrita no discurso que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva leu no Palácio do Planalto, na segunda-feira - e a sua carpintaria técnica. Sob esse último ângulo, o PAC está cheio de falhas, inconsistências e incongruências. Trata-se, afinal, de uma tentativa de dar organicidade a mais de 360 projetos que, na maioria, foram concebidos isoladamente e em circunstâncias e condições distintas das atuais e que, quando não se trata de projetos já em andamento, como os da Petrobrás, por exemplo, deverão ser financiados com recursos de um Tesouro praticamente exaurido e investimentos da iniciativa privada, sem que esta disponha de um ambiente propício para fazer mais do que tem feito nos últimos anos.

Quanto às linhas políticas que, em teoria, orientaram a elaboração do programa, no entanto, não há reparos a fazer. Na verdade, o discurso de Lula foi uma encorajadora profissão de fé na democracia e na ortodoxia econômica que há mais de 12 anos garante a estabilidade da moeda, embora quanto ao equilíbrio fiscal não haja qualquer garantia no PAC.

O governo, salientou o presidente Lula, quer colocar o Brasil no caminho do crescimento. Mas não a qualquer preço. O País, afirmou, “deve crescer com equilíbrio fiscal, com redução da dívida e da vulnerabilidade externa”; “deve crescer sem inflação e sem controle de preços”; “deve crescer mantendo e ampliando as liberdades civis e os direitos democráticos”.

Dizendo isso, Lula não apenas reafirmou o seu desejo de estabilidade - que, diga-se, tem mantido desde a “Carta aos Brasileiros” (embora no PAC não se comprometa com ela) -, como fez uma crítica pouco sutil aos presidentes Evo Morales e Hugo Chávez que, a pretexto de combater injustiças sociais, estão destruindo as instituições democráticas de seus países. Também não escapou o presidente Néstor Kirchner, que obtém na Argentina índices elevados de crescimento à custa do calote da dívida externa, da inflação alta e do controle de preços. Além disso, para desencorajar os adeptos do modelo chinês de crescimento, foi direto ao ponto: “Aqui não se cresce sacrificando a democracia, não se fortalece a economia enfraquecendo o social.”

Ao associar o crescimento econômico à democracia e ao progresso social, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dissociou claramente o Brasil não apenas dos vizinhos populistas, mas também de alguns países emergentes. Mostrou que o Brasil se destaca, nesse grupo, por ter uma identidade própria, em cuja essência prevalecem os valores mais caros da civilização ocidental.

Poderia parecer estranha, à primeira vista, a exortação presidencial à “mobilização coletiva que estimule uma mentalidade produtiva em todos os setores sociais e ajude a fundamentar uma verdadeira cultura produtiva: a cultura do trabalho”. Ora, uma das características mais notáveis do povo brasileiro é o seu pendor para o trabalho. Não foi outra coisa, senão o trabalho árduo, que transformou esse país numa das 15 maiores economias do mundo.

Mas o presidente Lula se apressa a esclarecer que não apenas reconhece a existência de uma “energia empreendedora que se espalha pelo Brasil afora”, como pretende contaminar com essa energia “o ambiente interno do governo, porque só avançaremos se conseguirmos melhorar, cada vez mais, o padrão de eficiência do setor público”.

De fato, os fatores que contém o crescimento do País têm a sua origem, todos, no setor público. Se a carga tributária é uma das maiores do mundo, se os marcos regulatórios não são favoráveis aos negócios, se a reforma tributária não anda e a indispensável reforma da Previdência não desencrua - tudo isso se deve, primeiro, à complacência do governo diante do exagerado tamanho do Estado, que consome os recursos e as energia do setor privado e, depois, à paquidérmica ineficiência da máquina estatal, acolitada por um corpo legislativo infenso à modernização das instituições.

Os projetos do PAC que saírem do papel certamente ajudarão a aquecer a economia. Mas as suas metas de crescimento sustentado também certamente não serão atingidas enquanto não forem feitas ousadas reformas estruturais. Ou seja, enquanto o governo Lula não passar a agir exatamente como o seu discurso pretende dizer que está agindo.