sábado, dezembro 02, 2006

VEJA Entrevista: Robert Kagan

O país da guerra

O ensaísta americano desconstrói o mito
de que, em assuntos internacionais, os
Estados Unidos só atacam para se defender


Carlos Graieb

"Americanos são de Marte e europeus são de Vênus." Com essa frase, o cientista político Robert Kagan deu início ao livro Do Paraíso e do Poder (Rocco), que causou polêmica em 2003. Ele explorava as razões e as conseqüências de duas maneiras de fazer política externa. Segundo Kagan, a apologia européia dos organismos internacionais tem muito de hipocrisia e autocomplacência: resulta da perda de poderio militar e floresce num mundo policiado pelos americanos – que não têm medo de exercitar seus músculos. Kagan acaba de lançar mais um livro. Seu propósito é combater a idéia de que, ao usarem a força na arena internacional, os Estados Unidos estão fugindo às suas tradições políticas. O livro se chama Dangerous Nation (Nação Perigosa) e analisa as crenças e os valores que deram forma à política externa americana desde os primórdios do país até o fim do século XIX. Um segundo volume a ser lançado no futuro deverá retomar o assunto do século XX em diante. Kagan, de 48 anos, foi assessor político do governo Reagan. Falou a VEJA por telefone de Bruxelas, onde sua mulher, a diplomata Victoria Nuland, é representante americana na Otan.

Veja – O senhor afirma que os americanos se iludem a respeito de si próprios no campo da política internacional. No que consiste essa ilusão?
Kagan – A despeito de alguns séculos de história nos quais promovemos guerras para a aquisição de territórios, intervenções em outros países e ocupações prolongadas, muitos americanos acalentam a idéia de que os Estados Unidos tendem ao isolamento e à neutralidade e só agem na arena externa quando sofrem ataques. Esses americanos se surpreendem diante das ações belicosas de seus governantes. Eles se surpreendem ao descobrir que outros povos nos temem e nos odeiam e pensam que, se nos vemos nessa situação, é porque traímos nossa identidade. Esses americanos acreditam em um mito. Desde que os primeiros peregrinos fincaram pé na América, fomos um poder expansionista. Esse é o impulso que está inscrito em nosso DNA, não a neutralidade ou o isolacionismo. Tirei o título de meu livro de uma observação feita por John Quincy Adams quando ele comandava a embaixada americana em Londres. Segundo Adams, corria na Europa o sentimento universal de que éramos um "membro perigoso da sociedade das nações". Essa observação foi feita em 1817. Ganharíamos muito ao deixar de lado as idealizações sobre nossa tradição política.

Veja – O senhor descreve a filosofia americana no campo das relações internacionais como sendo liberal e diz que esse liberalismo resulta em contradições. Em que sentido?
Kagan – Nosso ideário liberal está inscrito na Declaração de Independência e na Constituição. Ele remonta ao filósofo inglês John Locke, e seu núcleo é a salvaguarda dos direitos do indivíduo. Todos têm direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade – inclusive no sentido material. O papel dos governantes é proteger e fomentar esses direitos. Aqueles que não o fizerem serão ilegítimos. As implicações disso no trato com o "mundo externo" são extensas. Cito apenas um exemplo: em nome da liberdade de iniciativa de seus cidadãos, administrações americanas dos séculos XVIII e XIX sentiram-se compelidas a dar apoio aos colonos que avançavam sobre território indígena, mesmo quando esse avanço criava tensões inoportunas e contrariava acordos legais. Ora, não é difícil perceber o curto-circuito que se forma cada vez que o liberalismo aplicado aos americanos cerceia a liberdade alheia. Ao mesmo tempo em que serve como mecanismo de expansão territorial, política e comercial, a filosofia embutida em nossos documentos fundadores às vezes torna difícil justificar nossos atos de poder e ambição.

Veja – A idéia de que o modo de vida americano está sob constante ameaça – e de que o país só ataca para defender-se – é muito forte nos Estados Unidos. Qual a origem desse sentimento?
Kagan – É a convicção profunda de que, com nossa forma de governo democrática, atingimos um pináculo na história da civilização. Talvez só Roma, na Antiguidade, cultivasse uma concepção semelhante de seu papel civilizador. O resultado dessa crença é o nosso impulso para transformar os países que não se alinham conosco. Aqueles que nos ameaçam o fazem porque não são democráticos. A cura está na mudança de suas formas de governo. O Japão e a Alemanha não eram perigosos na II Guerra porque buscavam o poder, mas pela natureza do império e do nazismo. Depois da guerra, tornou-se uma prioridade supervisionar a transformação de regime político nesses países. De maneira semelhante, depois do 11 de Setembro tornou-se comum a idéia de que a resposta às ameaças que emanam do Oriente Médio está na democratização daquela região. Sabemos perfeitamente bem que os Estados Unidos não atacaram todas as ditaduras existentes. Pelo contrário, apoiaram muitas delas. Mas todas as vezes que nos lançamos à ação recorremos à mesma lógica. O mundo precisa ser transformado para se tornar seguro: essa tradição de pensamento é muito forte entre nós.

Veja – De maneira curiosa, uma guerra interna – a Guerra Civil que devastou o país na década de 1860 – parece ter tido um papel central na definição da maneira como os Estados Unidos lidam com as questões externas. Como isso aconteceu?
Kagan – A Guerra Civil foi travada em torno da escravidão e do problema ético que ela representava. A vitória do Norte liberal sobre o Sul escravista consagrou no país a idéia das guerras justas – de que há combates feitos em nome de princípios morais. Quando a I Guerra Mundial se aproximava, Theodore Roosevelt não hesitou em compará-la à Guerra Civil, dando assim à participação americana o caráter de uma cruzada moral. A II Guerra foi vista do mesmo modo. Nossas guerras são cruzadas morais: essa é a memória que o país cultiva. Mesmo hoje, a crença na guerra justa prevalece nos Estados Unidos de uma maneira que não se vê em outras partes do mundo e certamente não na Europa. Uma pesquisa patrocinada por entidades alemãs procura medir as diferenças de pensamento nos dois lados do Atlântico há vários anos. Uma das perguntas que são sempre feitas é: "A guerra pode ser necessária para obter justiça?". Mais de 80% dos americanos respondem sim a essa pergunta. Na Europa continental, apenas 30% concordam.

Veja – Seu livro anterior, Do Paraíso e do Poder, é justamente sobre as diferenças entre americanos e europeus. Algo mudou desde que o escreveu?
Kagan – O argumento continua válido. Os europeus continuam hesitando em ter uma postura ativa nos conflitos internacionais. Eles se envolveram no Afeganistão e falam em aumentar seus esforços, mas os recuos são freqüentes. Veja bem, eu acho que os europeus têm razão ao reclamar da maneira como a guerra no Iraque foi conduzida. Aqueles que se opunham à invasão avisaram que ela poderia ser desastrosa – e neste momento estamos nos aproximando do desastre. Para países com grande população islâmica, como são os países europeus atualmente, não há dúvida de que os últimos anos acirraram ânimos e o sentimento de insegurança. Mas eu ainda acredito que o domínio americano sobre o sistema internacional de segurança beneficia os europeus de uma forma que eles não reconhecem. Sem as garantias americanas, o poder crescente dos alemães não deixaria de causar desconforto na Europa, por exemplo. Mas a tendência é baratear essa questão. Alguns líderes que viveram a Guerra Fria, como Joschka Fischer, reconhecem o papel dos Estados Unidos em tornar viável a União Européia. Mas eles são hoje uma minoria.

Veja – Ser um país poderoso não é o mesmo que ser um império. Este último conceito se aplica aos Estados Unidos?
Kagan – Os Estados Unidos tiveram momentos imperiais. Quando marchou pela América do Norte absorvendo territórios, ou quando invadiu as Filipinas, no fim do século XIX, o país agiu como um império, sem dúvida nenhuma. O curioso sobre os americanos é que eles nunca demonstraram ter o desejo de exercer um governo direto sobre outros povos – ao contrário do que aconteceu com os britânicos, por exemplo. O dever, até mesmo a obrigação, de governar povos menos desenvolvidos fazia parte da auto-imagem inglesa. Os americanos, por outro lado, sempre sentiram que deveriam mudar os outros. Para países que experimentaram todo o peso do poder americano – como a Nicarágua, por exemplo –, essa distinção talvez soe bizantina. Mas a meu ver ela significa que os Estados Unidos não são, nem nunca foram, um império no sentido clássico.

Veja – O historiador britânico Niall Ferguson descreve os Estados Unidos como "um império em estado de negação". O que o senhor acha dessa idéia?
Kagan – A diferença entre mim e Ferguson é que ele acredita que o simples poder dos Estados Unidos basta para qualificar o país como um império, enquanto eu penso que as intenções são essenciais. Os ingleses tomaram o poder na Índia e planejaram ficar lá para sempre. Os Estados Unidos entraram no Afeganistão cinco anos atrás e desejam sair o mais rápido possível. Só o medo do que poderia acontecer com a saída os detém. Não consigo me lembrar de um único país ocupado pelos Estados Unidos onde tenhamos desejado permanecer para sempre. Essa é uma distinção importante. Mas concordo com Niall Ferguson quando ele diz que os Estados Unidos não compreendem as conseqüências e as responsabilidades decorrentes do exercício de seu grande poder. Se você entra num lugar para transformá-lo, tem de mostrar o empenho necessário e levar a tarefa a cabo. Caso contrário, é melhor nem começar.

Veja – Suponho que o senhor discorde da idéia de que os Estados Unidos devem sair quanto antes do Iraque.
Kagan – Sem dúvida nenhuma. A única coisa sensata a fazer neste momento é enviar mais tropas ao Iraque, e não planejar a saída. Nenhuma solução política será viável em meio a uma escalada de violência como a que observamos. Essa escalada só será interrompida com a presença de mais forças. E não devemos nos iludir: o desastre de hoje será brincadeira de criança comparado à carnificina de uma guerra civil a pleno vapor. O motivo pelo qual atacamos o Iraque foi a crença de que Saddam Hussein era perigoso. Uma vez lá dentro, dissemos, de maneira típica, que o modo de curar o país era torná-lo democrático. Mas nunca mobilizamos os recursos militares e econômicos necessários a esse projeto. Perdemos tempo precioso argumentando que éramos "libertadores", que não estávamos comandando uma ocupação, e enquanto isso fugíamos da obrigação de manter a segurança no país e impedir que ele implodisse. Novamente, esse é um padrão antigo na política americana. Nós o observamos no interior do nosso país, depois da Guerra Civil. O Norte venceu a guerra imbuído de altos princípios, mas não tratou com a mesma seriedade do imperativo de reconstruir os estados do Sul.

Veja – O presidente Bush fez bem em demitir o secretário de Defesa Donald Rumsfeld?
Kagan – Rumsfeld deveria ter sido demitido três anos atrás. É difícil entender por que o maior responsável por uma estratégia militar desastrosa foi preservado por tanto tempo. O pior de tudo é que a demissão, no momento em que aconteceu, nem sequer trouxe benefícios eleitorais a Bush. A votação já havia passado, com a vitória democrata. Os republicanos estão furiosos com o presidente por causa disso.

Veja – Os democratas venceram as eleições com uma plataforma de oposição à guerra. Em termos históricos, existem muitas diferenças entre democratas e republicanos no campo da política externa?
Kagan – Na verdade, não muitas. A tradição neste país é que o partido que não está no poder se oponha aos projetos centrais da administração. Não governar é, por definição, se opor. Mas a longo prazo as divergências se apagam. Nos anos 90, o grande partido intervencionista, o partido que enviou tropas ao Haiti, à Bósnia e a Kosovo, foi o Democrata. Enquanto isso, os republicanos se referiam a essa linha de atuação como sendo excessivamente agressiva e arrogante. São exatamente os mesmos termos usados atualmente, mas na direção contrária. O partido que controla a Casa Branca sempre defende um papel mais atuante para os Estados Unidos nas questões mundiais. A exceção talvez tenha sido o período da Guerra Fria, quando os republicanos mantiveram uma política consistente de reclamar por mais ação. Na história recente, eu diria que a diferença entre Bill Clinton e George W. Bush não é nem de longe tão grande quanto as pessoas imaginam. Bush nunca disse nada sobre o Iraque que Clinton não houvesse dito antes. E Clinton demonstrou o propósito de invadir o país de Saddam em 1998 mesmo sem contar com o apoio das Nações Unidas. Suponha que Hillary Clinton se torne a próxima presidente americana. Ela tem se esforçado bastante para mostrar que não é complacente em questões externas, mesmo ao custo de desagradar à esquerda, e não tenho dúvida de que se mostraria bastante linha-dura nos primeiros momentos de sua administração. Na política externa, o histórico dos partidos tem sido muito mais de convergência que de divergência.

Veja – E no campo da economia? Acredita-se no Brasil que a maioria democrata tenda a dificultar o acesso brasileiro ao mercado americano.
Kagan – Isso pode ser verdade. Os democratas pregam a defesa do trabalhador americano contra a competição estrangeira. Mas esse discurso – às vezes bem enganador, na minha opinião – não chega a incluir uma condenação do livre-comércio. Ao longo da história, e em termos comparativos, a devoção americana ao livre-comércio é muito ampla. E incontestável.