editorial |
O Estado de S. Paulo |
29/12/2006 |
Um novo regime político está em vigor no Brasil, segundo se depreende das declarações feitas na quarta-feira pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele proclamou a mudança ao oficializar um “acordo” com as centrais sindicais sobre o aumento do salário mínimo para R$ 380. “Se houver seriedade entre o governo federal, o Congresso e os sindicalistas (...), as pessoas terão de acatar um acordo como esse quase como uma lei, uma decisão de uma instância superior, porque aqui está expressa a vontade de um conjunto de pessoas que representam a sociedade brasileira”, afirmou. Em outras palavras: decidir será uma prerrogativa do chefe de governo e dos dirigentes sindicais. Ao Congresso restará acatar e sacramentar a decisão, para dar o acabamento formal à “quase lei” estabelecida pela “instância superior” no Palácio do Planalto. O presidente Lula escolheu o valor de R$ 380 contra a opinião do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e de outras autoridades empenhadas em evitar um maior estrago nas contas da Previdência. Além disso, resolveu, em conjunto com os dirigentes sindicais, como serão os aumentos do salário mínimo até 2010 e a forma de correção da Tabela do Imposto de Renda Pessoa Física. Todas as decisões envolvem compromissos custosos para o setor público e podem resultar em maior desajuste fiscal e maior pressão inflacionária. São iniciativas demagógicas, assim como a promessa de veto de qualquer salário maior proposto pelos congressistas - uma encenação de seriedade como complemento de um ato irresponsável. Mas a demagogia presidencial, na cerimônia de quarta-feira, foi quase obscurecida pela exibição da face autoritária do populismo. Um presidente democrático poderia defender sua preferência, explicitamente, e até anunciar a intenção de veto, no caso de o Congresso aprovar um salário maior. Poderia argumentar com a conveniência de não agravar as condições fiscais. Mas o discurso de Lula ficou longe dos padrões da democracia representativa e organizada segundo a divisão tradicional de poderes. Ao mencionar uma “instância superior”, o presidente Lula reclamou para si e para os dirigentes sindicais um poder decisório maior que o do Congresso. Depreciou o Parlamento como instância de representação política e rebaixou sua competência normativa, atribuindo-lhe uma função subordinada. Definindo como “quase leis” as decisões conjuntas do chefe do Executivo, representado pelo ministro do Trabalho, e da cúpula sindical, promovidos a intérpretes incontestáveis da vontade dos cidadãos, o presidente revelou uma concepção de poder incompatível com os padrões constitucionais definidos em 1988. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem-se apresentado, em várias ocasiões, como o único responsável pelas decisões de política econômica. Na quarta-feira, ficou claro, pela primeira vez, o sentido real dessa declaração. Essas palavras não são uma forma de preservar o ministro da Fazenda. Se essa fosse a intenção, o presidente não teria admitido o achincalhe do ministro Mantega, pelos dirigentes sindicais, numa cerimônia pública. Admitiu-o, no entanto, e, além disso, apontou esses dirigentes como seus parceiros de fato e de direito em decisões de importância crucial para a economia. O presidente mencionou um “acordo” entre o governo e os sindicatos a respeito do salário mínimo. A palavra é estranha, porque pressupõe no mínimo um compromisso entre duas partes. Mas os sindicalistas nada prometeram. Apenas assumiram, com o consentimento do presidente da República, um papel ainda não previsto na Constituição escrita. Se apenas propuserem um salário maior, para forçar o veto presidencial, os congressistas praticarão mais que um ato demagógico. Cometerão uma tolice, pois a decisão sobre o salário de R$ 380 já é apoiada pelos dirigentes das centrais sindicais, convertidos em pelegos vinculados diretamente, como convém a personagens dessa espécie, ao centro do Poder Executivo. O conflito em torno dos R$ 380 só era relevante por causa das implicações fiscais do salário mínimo. O presidente Lula deu-lhe outra dimensão: a ameaça do autoritarismo populista. |