A decisão de não classificar de “terrorismo” os atos de banditismo ocorridos no Rio nos últimos dias provocou inúmeras mensagens, abrindo um debate sobre a natureza daqueles atos. Na coluna de ontem expliquei que preferia não chamar de “terrorismo” os atentados ocorridos no Rio porque o termo tem uma conotação política que poderia valorizar ou justificar, para alguns, o que são meras manifestações de bandidagem.
Mas, nestes tempos pós-modernos, conceitos e ideologias são muito mais fluídos.
Duas análises, ambas discordando da minha escolha, me parecem claras o suficiente para ampliar o debate.
O ex-secretário municipal Alfredo Sirkis, dirigente do Partido Verde, diz que os atos podem ser caracterizados como uma ação terrorista — ataque a população civil indefesa, com objetivo de semear pânico — e têm uma lógica política: pressionar o poder a agir ou a se omitir na direção dos interesses desses bandos armados (contenção das milícias, regalias carcerárias, o que seja).
Também o professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira afirma que estamos diante de um típico fenômeno de terrorismo.
“Na definição clássica — tanto nas ciências sociais como para orientação de organismos como a ONU ou a Home Security, nos Estados Unidos — consideramos terrorismo como o uso da violência visando a obrigar o poder público, grupos sociais, comunidades ou similares a fazer, ou deixar de fazer, algo da alçada pública”.
Há ainda a discussão sobre as milícias paramilitares que estão assumindo o controle de diversas áreas da cidade, expulsando os traficantes e “vendendo” proteção aos habitantes dessas áreas desprotegidas pelo Estado. Na contramão da maioria dos estudiosos e analistas, que criticam as milícias, e do próprio governador eleito do Estado do Rio, Sérgio Cabral, que promete combatê-las com a mesma ênfase com que combaterá os traficantes, vem da Prefeitura do Rio e seu grupo político uma visão do fenômeno que, se não deve ser classificada de conivente, pode ser entendida como complacente com a ação de tais grupos.
O prefeito Cesar Maia, em seu blog, diz que “os paramilitares são percebidos como grupos de autodefesa pelos moradores”. E anuncia que “neste momento, as milícias avançam sobre favelas como Dendê, Mangueira, Cidade de Deus, Morro dos Cabritos, S.
Bento (Pde. Miguel)... Os batalhões da PM próximos dão naturalmente cobertura a esta dinâmica”. O ex-secretário Alfredo Sirkis classifica as milícias de “anticorpos que a sociedade está produzindo”. Na verdade, os dois pretendem fazer apenas uma análise do fenômeno das milícias do ponto de vista da evolução da crise de segurança no Estado do Rio, e receitam a mesma solução: aumentar a presença de policiais nas ruas e nas favelas, ampliando a jornada de trabalho dos policiais e o policiamento ostensivo.
Já o professor Francisco Carlos Teixeira vê nas milícias a mesma ameaça ao estado de direito que os traficantes representam. Ele acha que funções do Estado estão, neste momento, sendo fortemente questionadas “tanto por milícias impositivas da violência não-regulada e não-sancionada como, obviamente, pelos cartéis e máfias formados pelo crime organizado”. As funções do estado de direito, sob regime democrático-representativo, estão, segundo sua visão, “sob forte ataque de entidades estranhas ao ordenamento jurídico de tipo constitucional”.
Na coluna de hoje vamos discutir a definição de terrorismo, para amanhã analisar o papel das milícias dentro da crise de segurança do Estado do Rio. Alfredo Sirkis lembra uma frase do ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, definindo a ação das Farcs — “São como os vikings, aquilo é seu modo de vida” — para dizer que aqui as facções criminosas têm a lógica do “modo de vida” bandido, mas, mesmo que seus objetivos não sejam a conquista do poder de Estado, nem por isso sua ação é menos política.
“Destina-se a conservar e autoreproduzir um modo de vida bandido (que já se expressa em uma cultura, com suas manifestações musicais e outras) e defender seus espaços de exercício do poder absoluto conquistados, suas favelas, sua fonte de renda, suas bocas de fumo”. Na sua análise, “vivemos hoje, em escala planetária, um processo de enfraquecimento do poder dos estados nacionais frente ao que um recente artigo na ‘Foreign Affairs’ caracterizava como ‘o novo medievalismo’.
Os baronatos do crime são uma ilustração disso. Não buscam o poder central — para que? — mas manter e consolidar a bárbara ditadura militar que exercem sobre as comunidades específicas que controlam”.
O efeito pratico dessa discussão, para Sirkis, seria a sociedade se convencer de que “estamos diante de um processo que é, sim, terrorista, político, insurgente (no sentido do desafio ao estado de direito, não no de almejar o poder central) e que caracteriza um conflito político-militar de baixa densidade, de novo tipo e que exige, como resposta, uma estratégia complexa, multidisciplinar, uma politerapia que vai do âmbito militar ao espiritual, passando pelo social, econômico, assistencial, micro-político, cultural”.
Também o professor Francisco Carlos Teixeira acha que “ao considerar como terroristas apenas aquelas entidades com um programa político elaborado — como antes do fim da Guerra Fria (1947-1991), reduz gravemente as características da Nova (des)Ordem Mundial, marcada, exatamente, pela existência das chamadas ‘Novas Ameaças’ — entre as quais destacam-se as máfias e o crime organizado de cunho transfronteiriço”.
Para ele, “a velha caracterização de terror — dos narodnics russos do século XIX até os grupos radicais marxistas Baader-Meinhoff, Brigadas Vermelhas; do extremismo fascista ou dos Movimentos de Liberação Nacional — não pode ser aplicada às novas condições mundiais. Não reconhecer a nova face do terror implica não se tomar as medidas necessárias, no tempo necessário que ainda nos resta”. (Continua amanhã)