sexta-feira, dezembro 22, 2006

Entrevista: Marvin Meyer

O homem que
compreende Judas


Isabela Boscov


Divulgação
Marvin Meyer, um dos especialistas que estudaram o Evangelho de Judas: entender o que pensavam os primeiros cristãos e rever dogmas pode ser essencial para a sobrevivência da Igreja


Treze folhas, escritas na frente e no verso, de um papiro fragilíssimo: descoberto na década de 70, no Egito, o texto que viria a ser autenticado como o Evangelho de Judas (originalmente escrito por seus seguidores em meados do século II) é um dos achados mais relevantes das últimas décadas para historiadores e teólogos. Talvez só comporte comparação, nesse sentido, com o Evangelho de Tomé, encontrado também no Egito, nos anos 40. No que toca à sua capacidade de polarizar opiniões, entretanto, ele não tem rival. Na tradição cristã, Judas Iscariotes é o emblema máximo da traição – o apóstolo que, com um beijo e em troca de trinta moedas, identificou Jesus para as autoridades romanas, que então o aprisionaram, martirizaram e crucificaram. O papiro de cerca de 1 700 anos de idade passou por um périplo nas décadas seguintes à sua descoberta, até chegar, no início desta década, às mãos da National Geographic Society americana, que mobilizou um time de especialistas para restaurá-lo, traduzi-lo, interpretá-lo e por fim publicá-lo – o que aconteceu com grande alarde no começo deste ano. Um desses especialistas é o americano Marvin Meyer, de 58 anos, catedrático de estudos cristãos e da Bíblia na Universidade Chapman, da Califórnia, além de profundo conhecedor de línguas da Antiguidade e arqueólogo experiente, com participação nas escavações de Nag Hammadi, no Egito, de onde saíram alguns dos mais significativos textos referentes ao cristianismo primitivo. Afável e expansivo, o presbiteriano Meyer tem uma história diferente para contar sobre Judas e os primeiros seguidores de Cristo: a história de uma religião nascente, repleta de vibração e capaz ainda de abarcar múltiplos pontos de vista sobre seu Messias. Antes de rejeitar o Evangelho de Judas ou qualquer outro desses textos, é preciso ouvir o que eles têm a dizer, defende Meyer – que conversou com VEJA também sobre dogma, fundamentalismo e a importância espiritual das religiões.

PODE-SE TOMAR O EVANGELHO DE JUDAS COMO UM RELATO HISTÓRICO?
Ele é a tradução de um texto que remonta a meados do século II e é um evangelho muito diferente dos canônicos. Mas foi escrito por cristãos sinceros, e pode-se afirmar que é tão verdadeiro quanto qualquer outro – apenas representa uma visão diversa daquela religião que surgia. Esse é o fato mais importante que ele traz à luz: o de que, no princípio, a Igreja estava aberta a diferentes pontos de vista sobre Jesus e a diferentes maneiras de professar a fé nele.

COMO O SENHOR AVALIA A RECEPÇÃO AO TEXTO?
Ao contrário do que possa parecer, ela tem sido das mais entusiásticas, mesmo entre membros individuais da Igreja. Como historiadores e teólogos, a questão entre nós é estarmos abertos a examinar o texto legado por Judas e ouvir o que ele tem a dizer – algo a que um número surpreendente de religiosos se dispõe. É claro que as lideranças cristãs o rejeitam por completo. Judas Iscariotes era um herege antes e, para efeitos oficiais, continuará a sê-lo. Isso é esperado. Muito do poder da Igreja vem do controle que ela exerce sobre seus dogmas e símbolos. Daí sua relutância em revê-los.

POR QUE O EVANGELHO DE JUDAS CHOCA TANTO ALGUNS CRISTÃOS?
A palavra evangelho quer dizer "boa-nova". Para muitos, então, associar "boa-nova" ao nome do traidor de Jesus soa profundamente herético. Que boas-novas Judas Iscariotes poderia trazer, eles se perguntam, se esse é o homem que traiu Jesus? O próprio título já sugere que é necessária alguma disposição para reabilitar Judas – ou até abraçá-lo como um bom discípulo.

O QUE PREGA O TEXTO?
Ele é um bocado místico e professa que o verdadeiro Jesus é o Jesus interior. Essa sugestão é típica dos gnósticos, membros das seitas cristãs que viam no conhecimento (em grego, gnosis) a chave para a fé e às quais Judas pertencia: o espírito é uma centelha divina, e por meio dele Deus pode viver no coração de qualquer ser humano. O corpo não é o invólucro mortal do espírito, como na visão tradicional – é a sua prisão, da qual é desejável libertar-se. A revelação que Jesus teria feito a Judas é que qualquer um de nós poderia se tornar um só com Deus, por meio do conhecimento do nosso espírito.

COMO A COMUNIDADE JUDAICA TEM REAGIDO AO EVANGELHO DE JUDAS?
Na tradição cristã, Judas Iscariotes é até hoje a imagem do judeu maldoso, e se tornou um dos esteios da estrutura odiosa do anti-semitismo. Para muitos judeus, a idéia de que existem subsídios históricos para que se veja Judas sob uma luz diferente equivale a demolir um dos pilares do anti-semitismo.

QUAL O MAIOR ENIGMA QUE AINDA RESTA POR SER EXPLICADO SOBRE A VIDA DO JESUS HISTÓRICO? SERIAM OS "ANOS PERDIDOS" DE SUA JUVENTUDE, SOBRE OS QUAIS NÃO EXISTEM RELATOS CONHECIDOS?
Nem Jesus se perdeu em algum ponto de sua vida, nem ela tem "anos perdidos". As escolhas literárias dos evangelistas do Novo Testamento é que deixam nos seus leitores mais entusiasmados a impressão de que há duas lacunas na vida de Jesus – da infância aos 12 anos e dos 12 anos até mais ou menos os 30. A natureza abomina o vácuo, e o mesmo se pode dizer de alguns estudiosos da Bíblia. Por isso se criaram hipóteses fantasiosas sobre Jesus cruzando o mundo para socializar-se com pessoas ilustres ou sábios hindus. Arrisco dizer que, nesse período em que suas atividades são ignoradas, ele estava com mamãe e papai em Nazaré, trabalhando como carpinteiro ou algo do gênero, até o momento em que teve sua experiência religiosa com João Batista e iniciou a trajetória que conhecemos.

QUE TIPO DE GENTE ERAM OS GNÓSTICOS?
Provavelmente eram tão variados entre si quanto os outros cristãos. Mas imagina-se que pelo menos alguns fossem pessoas instruídas, que circulavam nos meios filosóficos.

DIZ-SE QUE OS GNÓSTICOS FORAM EXCLUÍDOS DA IGREJA PORQUE NÃO ACREDITAVAM NA NECESSIDADE DE INTERMEDIÁRIOS ENTRE DEUS E OS HOMENS – DE SACERDOTES, ENFIM. MAS O EVANGELHO DE JUDAS NÃO SUGERE TAMBÉM OUTRA IDÉIA EXPLOSIVA, A DE QUE JESUS PRECISOU DE JUDAS PARA CUMPRIR O DESTINO DE MORRER NA CRUZ?
Se você acreditasse que para encontrar a centelha divina basta viajar para dentro de si, então de fato prescindiria de sacerdotes. E, claro, essa não era uma idéia popular entre os já numerosos padres e bispos da época. Além disso, os gnósticos passavam muito mais tempo meditando do que fazendo política – e a Igreja era um ambiente altamente político. Mas, para além dessas maquinações, o Evangelho de Judas certamente mexe com essa questão delicadíssima: a da força de Jesus na cruz e a maneira como ele aceita sua morte. Se supusermos que Judas não traiu Jesus, mas ajudou-o ao facilitar sua morte, como diz seu evangelho, então o texto não muda apenas o papel tradicional de Iscariotes – ele sugere que Jesus precisou de ajuda, uma idéia que, para alguns, é irreconciliável com a da dimensão divina de Jesus.

SERÁ QUE OS CRISTÃOS DE HOJE PENSARIAM MENOS DE UM JESUS QUE DEMONSTRASSE MEDO E FALIBILIDADE HUMANOS DIANTE DA PRÓPRIA MORTE?
Acho que pelo menos alguns cristãos, entre os quais eu mesmo, pensariam que um Jesus tão humano é uma figura com a qual é possível se identificar de forma ainda mais completa. Acredito que, se pudermos abraçar Cristo em toda a sua humanidade, então sua vida, sua mensagem e sua morte se tornam ainda mais poderosas.

QUE FEIÇÕES TERIA A CRISTANDADE HOJE SE OS GNÓSTICOS TIVESSEM PREVALECIDO?
É difícil imaginar que, com sua indiferença para com a política e sua falta de traquejo, os gnósticos pudessem ter se organizado o suficiente para competir no mercado das idéias religiosas e trabalhar junto com o Império Romano. Mas, supondo que eles tivessem juntado tanto espírito prático, é possível que a Igreja cristã fosse hoje uma organização mais abertamente mística e muito menos hierarquizada. Eu diria também que a capacidade de aceitar várias verdades, ou uma verdade multifacetada, seria central nessa igreja, porque o era para os gnósticos. A sanha anti-herética da Santa Inquisição, por exemplo, não teria acontecido. Outra coisa: entre os gnósticos, as mulheres e os homens trabalhavam ombro a ombro. É provável que hoje elas tivessem um papel tão crucial quanto o dos homens dentro da instituição.

MARIA MADALENA, ENTÃO, ESTARIA ENTRE OS APÓSTOLOS?
Sim. Se nos ativermos ao que se sabe sobre o Jesus histórico, será preciso rever toda a tradição dos discípulos. É provável, por exemplo, que eles fossem extremamente jovens – adolescentes, até. Não seriam doze, porque isso é uma criação da Igreja para referenciar as doze tribos de Israel. Eles seriam cinco, treze ou quinze, mas não precisamente doze. E haveria mulheres nesse círculo íntimo, como Maria Madalena. Os gnósticos, com sua independência, não tiveram medo de reconhecê-la entre os seguidores favoritos de Jesus.

É ISSO QUE TORNA AS DESCOBERTAS RECENTES SOBRE OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO, COMO OS EVANGELHOS DE MARIA MADALENA, TOMÉ E JUDAS, TÃO FASCINANTES PARA OS CIDADÃOS DE HOJE – SEU PENSAMENTO "MODERNO"?
A época em que essas descobertas vieram à luz, de sessenta ou setenta anos para cá, é muito propícia à curiosidade que elas têm despertado. Essa é uma época de transformações sociais sem precedentes, e as idéias contidas nesses textos – de igualdade entre os sexos, de busca espiritual interior, de tolerância para com opiniões diferentes – encontram hoje muito espaço no qual ecoar.

AS RELIGIÕES TEM UM PRAZO DE VALIDADE, POR ASSIM DIZER?
Na cristandade atual existem igrejas que estão perdendo membros e popularidade. É o caso do catolicismo romano. Outras igrejas, como as evangélicas, atraem rebanhos cada vez mais numerosos e entusiásticos – talvez até entusiásticos demais. Este é um tempo em que quase tudo na vida humana está secularizado e pode ser explicado pelas ciências sociais. Um tempo, também, em que tudo parece ser relativo e em que os valores que pareciam eternos estão como que fugindo de nós. Muitas pessoas, portanto, sentem de forma aguda a falta de algo que seja certo, seguro e eterno. Elas passam então a gravitar em torno de religiões evangelizantes ou fundamentalistas, que se anunciam como portadoras dessas certezas. É o que está acontecendo nos Estados Unidos de hoje, e também no mundo islâmico: a adesão crescente ao fundamentalismo religioso.

NÃO HÁ, PORÉM, UM NÚMERO IGUALMENTE SIGNIFICATIVO DE FIÉIS QUE TEM DIFICULDADE EM CONCILIAR AS DOUTRINAS RELIGIOSAS À SUA EXPERIÊNCIA DA VIDA?
Algumas das doutrinas cristãs têm quase 2.000 anos de idade, e várias delas comportariam uma revisão – como a da concepção imaculada. Em quase todas as religiões pagãs encontramos histórias de deuses que geram filhos em mulheres mortais. Maria, porém, não era virgem apenas quando engravidou de Jesus; ela é para todo o sempre uma virgem. Ou seja: Jesus não nasceu de nenhum ato sexual convencional, e Maria é uma mulher melhor por ser virgem. Que visão da sexualidade e das mulheres é essa? Devemos aceitá-la tal e qual nos dias de hoje? Se a Igreja pretende sobreviver a longo prazo, talvez precise adotar leituras mais saudáveis de alguns de seus dogmas.

IGREJA CATÓLICA, ENTRETANTO, NÃO COSTUMA ENCORAJAR RELEITURAS.
A ironia é que a Igreja nasceu de um homem que não era nada menos do que um revolucionário e um pensador de vanguarda. Jesus viveu uma vida em que não cabiam padrões tradicionais de comportamento e andava em companhia de gente que não era exatamente bem-vista. Creio que, se Jesus batesse à porta de nossas igrejas hoje, ele se mostraria o mesmo agitador que foi no século I – e não sei se encontraria um lugar nessas instituições.

COMO UMA FÉ REVOLUCIONÁRIA VIRA UMA INSTITUIÇÃO EM QUE OS DOGMAS E A HIERARQUIA ESTÃO GRAVADOS EM PEDRA?
Seja qual for a figura central de uma fé – se Jesus, Maomé ou Buda –, ela começa como um movimento profético e carismático. Mas, para perdurar, tem de se estruturar. É preciso decidir de onde virá o dinheiro, quem será o líder, como se nomeará o líder seguinte. Aí se iniciam os jogos de poder. Numa religião, isso significa decidir também qual é a verdade, e quem a controla. A Igreja cristã é a mais bem-sucedida organização social de toda a história da humanidade. Muito desse sucesso se deve ao fato de que ela atravessou seus primeiros séculos lutando para sobreviver – fortalecendo-se, portanto –, até que o imperador Constantino se converteu, no início do século IV, e virou o jogo. Constantino disse ter visto "algo" nos céus. Suspeito que esse "algo" era político: a oportunidade de fazer uso de um movimento moderno e cheio de vibração, que, se organizado, poderia manter unidos os pedaços em que o Império Romano estava se esfacelando. Com o tempo, a Igreja se tornou a única instituição legal do império. Mas esse esforço no sentido de uma verdade e um poder únicos é um vetor dos mais conservadores.

O SENHOR FREQÜENTA A IGREJA?
Minha mulher e eu pertencemos a uma igreja presbiteriana, na qual somos muito ativos: cantamos no coro, participamos de ações coletivas e somos leais às discussões que ocorrem ali. Sou presbítero ordenado. Mas tenho dificuldade com quase tudo que se refira a dogma. É a liturgia – o canto, por exemplo – que hoje me proporciona os momentos de maior elevação.

NA SUA OPINIÃO, QUAL A MAIOR CONTRIBUIÇÃO QUE O EVANGELHO DE JUDAS TEM A OFERECER?
Fiz uma série de palestras no Japão, país em que os cristãos compõem uma minoria minúscula. A maior parte das pessoas presentes a esses seminários não era cristã e não tinha, portanto, obstáculos religiosos à apreciação das palavras de Judas. O que as tocou profundamente foi o sacrifício, por assim dizer, de Judas Iscariotes: a idéia de que, por lealdade ao seu mestre, ele se submeteu à marginalização e ao ódio e concordou em se tornar o símbolo da traição mais torpe.