quarta-feira, novembro 29, 2006

Vamos ter saudades de Gushiken?José Nêumanne


Artigo -
O Estado de S. Paulo
29/11/2006

Decerto os cientistas sociais torceriam o nariz se este leigo definisse o regime vigente no Brasil como “democracia de massas”, que funciona sob a hegemonia de um “partido de massas”, o que não é nosso caso. Fruto da aliança improvável forjada em sacristias da Teologia da Libertação, sedes de sindicatos e desativados aparelhos da guerrilha de esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT) teve uma oportunidade para chegar a ser algo próximo. Mas a vocação irresistível de seus militantes pelas “boquinhas” disponíveis na máquina pública não permitiu que tal projeto se realizasse. Como antes já havia ocorrido com o peleguismo cooptado por Getúlio Vargas para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), dissolvido pela truculência militar e reerguido sob a égide da privatização do Estado brasileiro, nesta era da barganha de cargos no Executivo por votos no Legislativo.

De qualquer maneira, Luiz Inácio Lula da Silva é o mais genuíno produto do povo brasileiro a ascender à “zelite” dirigente nacional dispensando currículo escolar mínimo, sucesso em gestão pública ou privada e outras convenções que distinguem numa sociedade capitalista a ascensão social. Então, talvez seja o caso de falar em “democracia popular”, pois nenhum chefe de governo na História do Brasil independente se identificou tanto com o brasileiro comum quanto ele. Com o País partido em duas metades inconciliáveis - de um lado, a banda que depende do Estado e, de outro, a porção que não depende -, muita gente perde o sono com a eventualidade da volta aos velhos temores de ruptura com o sistema financeiro internacional e a adesão ao obsoleto populismo econômico, que tanto fascina os grupos de esquerda dos quais o PT é mais caudatário que resultante. Esse temor parte da premissa falsa de que o presidente reeleito seja um socialista ou mesmo um nostálgico dos tempos da guerra fria de antanho, quando a Utopia marxista-leninista se contrapunha ao imperialismo selvagem.

Lula nunca foi um socialista autêntico e qualquer analista mais atento de sua biografia e da história do PT até há de perceber sinais evidentes de um certo anticomunismo. Católico, pragmático e carismático, o presidente certamente não teve nenhuma dificuldade de aceitar a guinada proposta por Antônio Palocci da retórica reformista para a adoção da responsabilidade fiscal com convicção. A vitória em duas eleições, que foi ancorada nessa estratégia, é uma espécie de breve contra qualquer tentação de volta atrás aos tempos românticos em que o PT pregava o calote da dívida. Em vez de servir de estímulo para que isso venha a acontecer, o afastamento forçado de seu primeiro ministro da Fazenda do comando da economia talvez tenha permitido ao chefe supremo a oportunidade de reafirmar que, mais que um “paloccismo” sem Palocci, o pragmatismo responsável segue a orientação arraigada de seu tino político e do instinto que o faz permanente porta-voz das aspirações, ambições e opiniões do brasileiro médio.

Se deve haver algo que tira o sono de todos quantos sonham com uma democracia de verdade funcionando nestes tristes, mas carnavalescos, trópicos, isso não está na gestão dos negócios republicanos. Mas, sim, na distância que está aumentando dia a dia entre a “democracia popular” sob Lula e a higidez das instituições da velha e boa “democracia burguesa” de guerra e paz. Quando Lula pede aos governadores que deixem para fazer oposição daqui a quatro anos, quando ele estiver aposentado, não o faz por graça ou pirraça, mas por achar, sinceramente, que é uma injustiça alguém se opor a qualquer ato de uma gestão tão genuinamente popular quanto está sendo e continuará a ser a dele. E mais que sincero, ele está sendo coerente, pois desde que assegurou o triunfo nas urnas nada tem feito no sentido de compor um governo enfim à altura da força do voto popular, mas, sim, um projeto ambicioso e truculento de demolição de qualquer possibilidade de oposição, capaz de ameaçar a hegemonia de seu projeto de poder.

Esse projeto passa, inevitavelmente, pelo amordaçamento dos meios de comunicação. A cooptação do PMDB à custa da “despetização” do primeiro escalão é coerente com o afastamento de Boris Casoy do comando do telejornal da Record, especificamente, e, genericamente, com as tentativas de tornar impossível a resistência democrática na imprensa, no rádio e na televisão. O malogro de ameaças como o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) para intimidar jornalistas e a Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav) para controlar os conteúdos no veículo de massas por excelência, a televisão, não representa mais que uma trégua para respirar. Vem aí algo muito mais perigoso para a liberdade da informação e da manifestação plural da opinião: o reconhecimento público de que o governo e os movimentos sociais que o apóiam estimularão a existência de instrumentos de comunicação que enfrentem e substituam os existentes. A pretexto de “democratizar” a notícia, o governo recém-reeleito pretende mesmo é dificultar o acesso do cidadão sem poder ao conhecimento pleno do desempenho dos gestores públicos, perpetuando-os no comando pelo uso maciço e eficiente da propaganda administrativa e da manipulação do jargão político igualitário.

O malogro da estratégia no primeiro mandato levou Luiz Gushiken, dela encarregado, à companhia de Dirceu e Palocci no cadafalso dos companheiros que tombaram no caminho. Na segunda gestão, a tarefa foi transferida para Dilma Rousseff, mais competente e determinada que ele. Paradoxo terrível o de a “neodemocracia” pôr em risco o Estado de Direito fingindo servir ao povo em cujo nome o poder é exercido. E ironia incrível esta de a liberdade de imprensa ser ameaçada pela queda de um dignitário que ela derrubou.