sábado, outubro 28, 2006

Memória coletiva


O diretor Cao Hamburger volta a
1970 para fazer uma ponte entre
o presente e o século XX dos exílios


Isabela Boscov


Fotos divulgação
O ótimo Michel Joelsas, como Mauro: o ano da Copa não foi só de festa

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Trailer do filme
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Em 1925, quando a era das comunicações começava a se acelerar, o filósofo francês Maurice Halbwachs aventou a idéia de uma "memória coletiva": o conjunto de lembranças que um grupo de pessoas compartilha sobre um evento marcante e que, somado a fatos e imagens de domínio público, forma um tecido muito mais extenso e bem tramado do que a simples soma das recordações individuais. Esse tecido é tão forte, aliás, que pode ser compartilhado até mesmo por gerações que não assistiram aos acontecimentos. É um fenômeno presente na maneira como os judeus lembram o Holocausto ou os americanos revivem a Guerra do Vietnã. Na vida brasileira, o ano de 1970 é um desses polarizadores da memória coletiva: o ano em que o país reuniu a mais brilhante escalação da história do futebol, em que esse time derrotou de maneira quase heróica cada um dos seus adversários (em especial naquele torturante 1 a 0 contra a Inglaterra), em que a população experimentou, na Copa do Mundo, seu primeiro grande evento de mídia – e também um ano em que a ditadura militar arrancava as pessoas de suas casas e sumia com elas, em que tudo era dito aos sussurros e em que essa euforia de uma torcida nacional foi usada como cortina de fumaça para o desgoverno e se misturou a ele. Pergunte-se a um ou outro indivíduo o que ele lembra de 1970, e ele já não saberá separar suas próprias memórias, as fragmentadas e incompletas, dessa trama tão abrangente e ressonante. E está aí, em boa medida, a beleza de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Brasil, 2006), que estréia nesta quinta-feira no país: na maneira como ele ao mesmo tempo separa e une esses dois fios da memória.

No começo de 1970, Mauro (Michel Joelsas), de 12 anos, é tirado às pressas de sua casa em Belo Horizonte e levado para o apartamento do avô, no bairro paulistano do Bom Retiro. Os pais, aflitos, dizem que estão saindo de férias e, quando puderem, voltarão para buscá-lo, de preferência a tempo de assistirem juntos à Copa. Vão-se embora sem conferir se o avô recebeu o menino em segurança. Mas ele não está em casa, nem vai voltar. Mauro vira então atribuição da vizinhança. Mora meio na casa vazia do avô, meio no apartamento ao lado, do velho Shlomo (Germano Haiut), zelador da sinagoga local – o Bom Retiro reunia então uma forte comunidade judaica, a que Mauro nem sabia pertencer. Janta com uma pessoa, almoça com outra, brinca com as crianças do bairro e, o tempo todo, mantém um olho grudado no futebol e o outro no telefone, à espera de uma ligação dos pais que não chega nunca.

O pernambucano Germano Haiut, como Shlomo: é melhor ser prático que sentimental

Todo o filme se compõe dessa rotina, que transcorre com alterações quase imperceptíveis. Somadas, porém, elas obrigarão Mauro a percorrer uma distância imensa. De simplesmente se acomodar ao novo cenário, ele terá de se integrar a ele. Da mesma forma, vai perceber que os pais estão em fuga, não em férias, e entender que seu problema é parte de outro, que não se resume aos acontecimentos daquele ano. Se os velhos do bairro transformam a acolhida ao menino numa empreitada prática, e não sentimental, é porque sabem em primeira mão o que é perseguição, perda e exílio. E sabem também que, mesmo que seus pais não retornem, Mauro vai seguir adiante, porque isso é o que eles próprios fizeram.

Composto a partir – e do que mais seria? – das lembranças do diretor Cao Hamburger e dos co-roteiristas Cláudio Galperin, Anna Muylaert e Bráulio Mantovani, O Ano tem muito do cinema argentino visto em Valentín ou Kamchatka: uma maneira quase subentendida de descrever uma experiência pessoal e pouco a pouco abrir o quadro, para então mostrá-la como uma pequena peça de uma experiência muito mais ampla. O sucesso de um filme assim, situado num passado recente, depende de elementos intangíveis. É preciso acertar nas roupas, nas cores, nas músicas e nas fachadas, mas não basta acertar nelas. É preciso também recriar um tom e uma atmosfera que ao mesmo tempo transportem o espectador para suas lembranças pessoais e se afinem com essa memória maior. É uma tarefa das mais difíceis – e o fato de O Ano fazer com que ela pareça fácil dá uma medida da sua competência.