Ufa! O Brasil chega ao dia D do segundo turno com a sensação de que a população começa a regurgitar depois de consumir o mesmo prato por quase quatro meses seguidos. Já se foram os tempos em que campanha eleitoral era a festa cívica de consagração de valores republicanos, elevação de padrões morais e reconhecimento de perfis identificados com a defesa do bem comum. Tornou-se um ciclo de disputas entre pessoas e grupos para conquistar o poder. Poder que se transfere, a olhos vistos, da esfera do Estado para o espaço pessoal, por obra da manipulação de marketing e patrocínio de uma cultura que favorece o culto à personalidade. Basta ver a escolha que se faz hoje. Pensa-se mais na imagem do candidato representando papéis de herói, salvador da Pátria, guia e pai do que em suas idéias. Ideário, aliás, que chega às urnas esquartejado, depois de atravessar o corredor de pancadarias na esteira do maior acervo de ilícitos políticos da contemporaneidade.
Não é de admirar que, num cenário de banalização de denúncias e impermeabilização social, as pesquisas apontem a vitória daquele que melhor soube tirar proveito das circunstâncias: Luiz Inácio Lula da Silva. O candidato à reeleição, franco favorito, tem razão quando diz que conhece a fundo “a alma do povo”. Uma vitória que seria impossível em país anglo-saxão profundamente enraizado na ética protestante - em função da onda de denúncias que mancham a própria figura presidencial - está prestes a ocorrer porque a “alma brasileira”, na expressão de alguns dos nossos sociólogos, convive harmonicamente com a dualidade dos conceitos riqueza e miséria, virtude e crime, honestidade e corrupção, generosidade e horror. Ou porque, como ensina J. O. de Meira Penna, somos uma sociedade tolerante que, “por emoção, justifica o crime”. O mal acaba perdoado. Por conseqüência, petistas têm o direito de mentir, como defende publicamente o recém-eleito governador da Bahia, Jaques Wagner, querendo dizer que todos têm direito à mentira, insinuando, ainda, que o dever moral se subordina a interesses dos atores. É de doer. Com essa moeda filosófica, os “ideólogos” do PT compram para Lula o terno do segundo mandato. A ética petista-relativista faz lembrar um curto diálogo que Jung manteve com um obá africano. Perguntou ele qual a diferença entre o bem e o mal, ao que respondeu o rei às gargalhadas: “Quando roubo as mulheres de meu inimigo, isso é bom. Quando ele rouba as minhas, isso é mau.” Derrotar o carlismo na Bahia e apoiar o sarneysismo no Maranhão é bom, mas a oligarquia nordestina é má.
No leito de uma cultura que justifica coisas erradas, os valores éticos (espirituais), esmigalhados pelo rolo compressor das imoralidades que entraram pelo túnel dos mensaleiros e desaguaram nos dutos do dossiêgate, não poderiam tomar o lugar dos valores do bolso (materiais), que pesam mais forte na avaliação dos eleitores. Economia estabilizada, inflação controlada, real valorizado, poder de compra preservado, beneficiando a todos, e mais o Bolsa-Família expandido, melhorando a situação das classes D e E, constituem motivos para garantir a eficácia do slogan “não troque o certo pelo duvidoso”. O bolso também funcionou em favor de Geraldo Alckmin. É o que se depreende da posição melhor alcançada nas Regiões Sul e Centro-Oeste, fustigadas, respectivamente, por uma seca e pela crise do agronegócio. É isso que as pesquisas indicam.
Ademais, o presidente teve melhor desempenho no plano do discurso. Disse ao povo o que ele queria ouvir. Conseguiu um feito: apelando mais para as impressões que para as informações, atuando mais no campo das emoções que no sistema de convicções, Lula construiu uma “des-razão”, uma “des-realidade”, um universo artificial. Falas cheias de comparações e imagens populares se somaram ao desfile interminável de feitos do governo e entraram com facilidade na cachola das massas, sobrando para Alckmin um discurso mais elaborado para os setores médios. Quando procurou seguir a pista popularesca de Lula, confirmando a continuidade do assistencialismo, o tucano passou a impressão de correr atrás do prejuízo. O turbilhão de denúncias passou ao largo da imagem presidencial. O candidato bateu na tecla de que seu governo não esconde nada por baixo do tapete. Colou. E o refrão “não sabia”, utilizado pela oposição para prender o presidente na teia de corrupção, não encontrou eco no coração das massas. Juntando-se ao discurso ético, diluiu-se no oceano das impurezas, perdendo forças para arrebentar na praia eleitoral.
Para inflar o balão de votos Lula contou com a força de mandatário-mor. Candidatos em pleno uso do cargo têm maiores chances de se eleger. Por isso o estatuto da reeleição no Brasil pode ser integrado ao capítulo do estelionato eleitoral. Governadores e prefeitos são cooptados facilmente por candidatos que usam o poder da caneta, como se viu na adesão em massa a Lula. Os tênues limites entre governante e candidato foram imbricados todo o tempo e nem os Tribunais Eleitorais souberam (ou quiseram) administrar as diferenças entre as duas esferas. Reeleição em sistemas democráticos fortes tem sua lógica. O aparato normativo funciona. Partidos e candidatos se controlam. Desvios no curso de uma campanha tiram candidatos do páreo. Aqui, o retrato é de caos. Por último, a organização também ajudou Luiz Inácio. As poucas alianças partidárias que fez não impediram que políticos de todos os partidos, inclusive do PSDB e do PFL, aderissem a ele. Pelo lado tucano, os aliados se apartaram em muitos Estados. Faltou um plano estratégico, o contato com as massas foi tênue, a programação eleitoral na mídia foi pobre e os recursos, escassos. E sobrou desorganização.
Chegamos a 29 de outubro com a sensação de que, entre mortos e feridos na guerra eleitoral, ninguém escapou. Mortos e feridos morais que passaram a locupletar cemitérios e sanatórios da velha política. Inclusive o presidente a ser eleito.