domingo, outubro 01, 2006

DANIEL PIZA

Páginas do sexo

Daniel Piza, daniel.piza@grupoestado.com.br

Apesar de hoje ser dia de eleição, o tema não é baixaria; é apenas o mais antigo e atual dos temas. Não à toa, afinal, a maioria dos “spams” - mensagens comerciais da internet - vem com ofertas de todos os tipos de atalhos para o prazer sexual, dirigido a mulheres que não destravam nunca ou maridos que não correspondem mais. E não à toa, num país como o Brasil, onde supostamente haveria liberdade maior nesse assunto, declarações ou imagens continuam a causar escândalos além da conta. A sensação é a de que quanto mais se fala sobre isso mais hipocrisia ou confusão aparece, em vez de esclarecimento.

É curioso notar, por exemplo, a reação causada pela novela Páginas da Vida quando, num dos depoimentos que exibe ao final de cada capítulo, ouvimos a história de uma mulher que descobriu sozinha o que nenhum homem lhe havia proporcionado até a meia-idade: o orgasmo. A edição poderia ter sido mais prudente e a emissora se desculpou, mas o caso obscureceu a questão que o autor Manoel Carlos pretendia levantar: o machismo brasileiro, de homens que só pensam em si próprios - na cama e fora dela - e, como vemos o tempo todo por aí, mal ajudam a criar os filhos. Só no mundo ingênuo da classe média não se imagina a quantidade de pessoas que devem ter se identificado com essa história. Se fosse uma mulher mais jovem e bonita, com linguagem mais elegante, ninguém ficaria tão chocado.

É verdade que a novela, com sua intenção de colar em casos reais, ironicamente se afasta do realismo ao colocar todas as situações num registro melodramático e estereotipado. A reincidente Helena de Regina Duarte é uma heroína sem nenhum defeito, um catálogo de virtudes politicamente corretas. E só por esse motivo é que ainda não encontrou felicidade duradoura ao lado de um homem. No entanto, como nas memórias de Danuza Leão, tudo gira em torno dessa possibilidade; como qualquer adolescente inexperiente, ela segue à espera do Grande e Eterno Amor. Talvez por isso os homens da novela sejam tão descoloridos, um bando que se divide em bobos ou infiéis. Mas ela tem o mérito de falar, como nas revistas femininas, daquilo que os homens fingem não ouvir.

Outro exemplo é o vídeo de Daniela Cicarelli com Tato Malzoni numa praia de Cádiz, que circulou pela Web e provocou comentários de todo tipo. Os comentários, note-se, eram a respeito dela, não dele - e não por ela ser mais famosa. Ela que “se expôs”. Ela que “devia ter sido mais discreta”. Ela que “troca de namorado a toda hora”. As mesmas pessoas que dizem tais coisas são as que, antes disso ou antes do casamento-mico com Ronaldo, ficavam admirando suas formas nas revistas e passarelas. As mulheres que hipervalorizam a aparência, a riqueza e a fofoca são também as que dizem que o mais importante é a “beleza interior”, à qual dedicam muito menos tempo e esforço do que ao sonho de ficar parecidas com a Daniela Cicarelli.

Quanto aos homens, sua inveja, bem brasileira, é indisfarçável. Ainda mais porque o filme é mais real, convincente, do que quase todas as cenas de sexo que se vêem na TV ou no cinema. A relação sexual é sempre mostrada de forma gráfica, com sol indireto ou contraluz, trilha sonora e closes nos rostos; jamais envolve carícias que não sejam beijos e posições além das mais aceitas. Isso não é exclusivo da linguagem audiovisual: a literatura também raramente consegue ir além do instante erótico sem detalhes, como no novo romance do hábil Vargas Llosa, Travessuras de uma Menina Má (Alfaguara), ou então, como em Joyce ou Proust, do erotismo como neurose. Não se descreve uma vida sexual que possa ser bem resolvida, não importa por quanto tempo ou em qual endereço.

Enquanto isso, os homens - que não precisam mais que duas canecas de chopp para começar a confessar aos amigos - se queixam da falta de iniciativa e ousadia das companheiras, não raro criadas ainda para agir como se sexo fosse secundário, como se depois da paixão inicial a rotina tivesse de ser parecida com a de um casal de irmãos. Sem perceber que o problema também está neles mesmos, muitos acabam optando por buscar fora o que não têm em casa e se tornam clientes de bordéis - ou arranjam amantes que começam como parceiras sexuais e logo depois se tornam eventuais substitutas da “titular”.

Por ainda distinguir mulher-pra-casar de mulher-pra-transar, homens assim são incapazes de satisfazer suas mulheres. Aqui, onde fazer topless na praia é um ato sujeito ao assédio mais grosseiro, até psicólogos e autores vividos usam a palavra “amor” como se ela não dividisse quarto com a palavra “sexo”. Do outro lado, as mulheres em geral não pensam de forma diferente. Em parte, porque assimilaram essa fração do pensamento masculino ao longo dos tempos. Mas também porque insistem na estratégia de ocultar fatos para obter o que desejam, como quando dizem que o homem “não precisa ser bonito” - justificando assim, em muitos casos, a escolha do marido feio e rico - e basta estar perto de um galã da Globo para caírem em histeria.

O que acontece no sexo é apenas a exacerbação do que acontece em outros aspectos da existência: a dose de realidade que se suporta é bem pequena. Ninguém perde dinheiro explorando a frustração sexual do público.

RODAPÉ

No amor sexual há ainda “acidentes” como o que descreve Robert Hughes em seu mais recente livro, Things I Didn’t Know (Knopf). Trata-se da ótima autobiografia desse crítico de arte australiano radicado nos EUA. Os grandes momentos, apesar das descrições de sua infância em escola jesuítica e da perda de um filho de 33 anos, são aqueles em que narra o período que passou na Europa aos 20 e poucos anos e descobriu a arte de Duccio, Grünewald ou Pisano, a crítica de Kenneth Clark, George Orwell ou Kenneth Tynan, a riqueza exigente da tradição. Mesmo assim, o trecho antecipado na imprensa inglesa foi aquele em que conta como sua primeira mulher, embalada no clima da contracultura, e ele adotaram o relacionamento “aberto” até que ela lhe contou que tinha ficado com Jimi Hendrix no banco traseiro da limusine do gênio do rock. Hughes reconhece que sua falta de estrutura interna o fez sofrer anos por isso.

DE LA MUSIQUE

O novo CD de Madeleine Peyroux, Half the Perfect World, talvez não vá fazer tanto sucesso quanto o anterior, Careless Love, por não ter uma música tão descontraída como Dance me to the Music. Como Diana Krall - que acaba de lançar o CD From this Moment on, só com “standards”, inclusive Insensatez, de Tom e Vinicius -, ela às vezes deixa tudo suave demais, embora trabalhe de modo mais criativo as durações das sílabas, como fica claro em sucessos como La Javanaise e Smile ou na faixa-título, de Leonard Cohen. Gostei especialmente do dueto com K.D. Lang na canção da grande Joni Mitchell, River, e da música de Tom Waits, The Heart of Saturday Night.

Esse grande Tom Waits, que ao lado de Elvis Costello e Cohen mantém viva a tradição da canção anglo-americana, está lançando novo CD agora, Orphans. E, interpretado por vozes femininas, tão distantes de sua rouquidão, como Madeleine Peyroux, Ute Lemper e até Anne Sofie von Otter, tem também sua Green Grass belamente cantada por Cibelle, a cantora brasileira radicada em Londres, no bom CD Shire of Dried Eletric Leaves.

POR QUE NÃO ME UFANO

Quando escrevi que existe “um lamento geral dos admiradores” da MPB de Chico, Caetano e companhia, quis dizer que nós, admiradores, lamentamos que eles já não façam grandes discos há algum tempo. Há no Brasil um medo de criticar medalhões em todas as áreas. Quando isso acontece, é comum ver a ação do compadrio, que logo faz lobby para emplacar uma defesa em termos hiperbólicos - e então o cineasta ou o maestro na berlinda é chamado de “um dos maiores do mundo”...

Lamento, por exemplo, quando um grande diretor de teatro como Antunes Filho faz de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, uma adaptação cansativa, quase um monólogo de Quaderna interrompido apenas pelas correrias e gritarias repetitivas que serviriam como ilustrações. E que ressalta a limitação ideológica da história de Suassuna, com sua pregação sebastianista do grande Brasil mestiço que era para ter sido e não foi.