terça-feira, outubro 31, 2006

AUGUSTO NUNES O protetor dos patifes


Coisas da Política
31/10/2006

Augusto Nunes
augusto@jb.com.br






Filmes policiais americanos popularizaram a cena, reproduzida quase todas as noites por seriados da TV. O suspeito é informado por um detetive de que acaba de ser preso, por envolvimento em determinado delito. Então, ouve a leitura de alguns direitos fundamentais. Tem o direito de solicitar a assistência de um advogado. Se não tiver meios de provê-la, o Estado providenciará um defensor público.

Tem também o direito de permanecer calado. A partir daquele instante, adverte a voz da lei, tudo o que disser poderá ser usado contra ele. Em seguida, é conduzido à delegacia. Ali começará a enfrentar a hora da verdade, feita de interrogatórios severos e investigações implacáveis.

O direito ao silêncio é a prevalência da Justiça moderna sobre a lei do cão, a vitória da metodologia científica sobre a extração de confissões mediante violência. A leitura dos princípios civilizatórios acalma o detido e, simultaneamente, elimina a possibilidade de abusos por parte dos captores - pressões intimidatórias, ameaças coercitivas, qualquer tipo de manipulação do vasto instrumental do medo. O aparelho policial e o sistema judiciário aprenderam a perseguir a verdade sem o uso de métodos que tornam todos, bandidos e mocinhos, igualmente criminosos.

Se o berço esplêndido tivesse juízo, teria importado sem retoques a boa fórmula americana. O suspeito poderia permanecer calado para não complicar mais ainda a própria situação, e as coisas estariam de bom tamanho. Mas o Brasil é mais embaixo. O que é ruim pode ficar péssimo. O péssimo pode sempre piorar. E assim o Código de Processo Penal decidiu que um réu teria o direito de mentir sem sobressaltos.

E mentir mesmo durante as sessões do júri, porque tudo o que diz no tribunal um bandido brasileiro, até na presença do juiz, é considerado peça de defesa. Nestes trêfegos trópicos, réus não juram dizer a verdade com a mão sobre a Bíblia. Mentem como quiserem, sobre o que desejarem.

É o que acaba de lembrar ao país, com a fisionomia radiante de um rábula em ascensão, o companheiro Jacques Wagner. "Ao réu é dado o direito de mentir", lembrou o governador eleito da Bahia ao sair em socorro de marginais de estimação. "Os réus petistas envolvidos nessa história do dossiê não são diferentes", exemplificou. "Estão usando o direito garantido pela lei".

Juristas respeitáveis defendem há tempos a remoção desse tumor. Jacques Wagner reiterou o elogio do cinismo com a expressão beatífica que pretende exibir na primeira fila das procissões do Senhor do Bonfim. Segundo o novo vice-rei da Bahia, mentirosos companheiros podem freqüentar sem medos a igreja mais famosa de Salvador. Mentir não é pecado. Não dá cadeia. Nem irrita divindades outrora inclementes com patifes de carteirinha.

Nenhum raio vingador, portanto, ameaça as cabeças de gente como Ricardo Berzoini ("Não tive nada a ver com essa história de dossiê") ou Jorge Lorenzetti ("Nunca falei em dinheiro"). Como a lei retroage em benefício do réu, o Código de Jacques será provavelmente invocado por Delúbio Soares ("Só usei dinheiro não contabilizado") ou Sílvio Pereira ("Ganhei o Land Rover por amizade"). E, claro, pelo presidente Lula ("Não vi, não sei, nem ouvi falar").

O chefe supremo tem ouvido com muita atenção o que pensa "esse galego que derrotou o ACM". Em homenagem à coerência, o presidente está convidado a suspender comentários depreciativos sobre advogados de porta de cadeia.