O Globo |
26/9/2006 |
Toda denúncia da imprensa contra pessoas ou entidades tem de ser precedida de investigação, minuciosa e isenta. Jornalistas não são carteiros, que entregam correspondência fechada. Não podem passar adiante automaticamente as denúncias que recebem - e, dependendo do momento político, elas surgem de montão. Quem as joga no ventilador assume uma responsabilidade talvez até maior do que a dos denunciantes: estes sussurram, a mídia bota a boca no trombone. O papel do jornalista que se dá ao respeito - e não tem interesses, mesmo confessáveis, na veiculação - é encarar denúncias como dado inicial de investigação cuidadosa. Ela dirá se aquilo que lhe foi oferecido em bandeja de prata é ou não parte de uma sórdida conspiração política ou financeira. O que se deve publicar é o que o trabalho jornalístico de investigação determina ser verdadeiro e de interesse público, não o que apenas parece saboroso material de leitura. Muito menos aquilo que coincide com interesses de patronos poderosos do veículo. No caso da publicação pela "IstoÉ" de uma entrevista da família Vedoin, implicada no escândalo das ambulâncias, existe a pesada suspeita de que a revista serviu a interesses políticos em São Paulo. Especificamente, do veterano cacique Orestes Quércia. Ele tem notórios laços - digamos, num sofisma caridoso, afetivos - com a publicação. O que fez a revista? Em primeiro lugar, deu espaço a uma acusação dos donos da Planam (empresa que comprovadamente não tem fé pública) sem conferir o conteúdo nem ouvir os atingidos. Até essa entrevista, o que fora divulgado tendo os Vedoin como fonte foram confissões de pai e filho em inquéritos policiais. Não algo que a dupla tivesse oferecido, com insistência obviamente suspeita. A "IstoÉ" preferiu não desconfiar; publicou automaticamente o que ouviu. Mesmo que houvesse boa-fé, esse comportamento teria violado o princípio elementar do jornalismo investigativo citado acima. Reiterando: para quem trabalha com seriedade, denúncias são apenas o primeiro passo de uma averiguação que levará ou não à sua divulgação. Principalmente, quando elas são fornecidas por pessoas cuja desonestidade não foi apenas denunciada, mas confessada, como é o caso dos Vedoin. Publicar sem comprovar com fontes independentes e sem ouvir os acusados fere princípios elementares e óbvios do jornalismo. No número desta semana, a "IstoÉ" se defende. Afirma que apenas publicou o que lhe foi declarado; faz questão de acentuar que as acusações "nada têm a ver com o fajuto dossiê que petistas trapalhões tentaram comprar dos Vedoin". Desculpa curiosa: gravações da Polícia Federal, divulgadas pela "Veja", mostram os empresários corruptos empenhados de forma igual e simultânea na entrevista à revista e na divulgação do documento "fajuto". Eram peças articuladas da mesma mistura de conspiração política e chantagem financeira. A imprensa brasileira tem um passado de denúncias irresponsáveis e levianas. Mas os veículos mais responsáveis têm mostrado nos últimos anos, em episódios cada vez mais comuns, a capacidade de distinguir entre a divulgação de calúnias e a exposição de erros e crimes. Ainda erramos - mas quase sempre procuramos aprender com os erros. Sobrevivem, no entanto, aqueles que manipulam e deformam informações procurando atingir objetivos que nada têm a ver com jornalismo. Não são da nossa turma. |