quinta-feira, setembro 28, 2006

Cora Ronai A mão e o Lula

No domingo passado, João Ubaldo escreveu um artigo intitulado “O presidente Lula beijou a mão de Jader Barbalho”.

Um título desses não carece de explicações ou aulas de sociologia; na verdade, não carece nem de artigo. Ainda assim, João Ubaldo disse tudo o que qualquer brasileiro de plena posse das suas faculdades éticas e morais deveria gostar de ter dito.

Digo “deveria” porque, para minha absoluta perplexidade, há uma gigantesca quantidade de brasileiros de boa conduta e moral ilibada que não viram no fato descrito pelo título nada demais: são eleitores do Guia Genial dos Povos que aceitam, do santo de sua devoção, um comportamento que jamais teriam eles mesmos, e que repudiariam com veemência partindo de seus amigos ou familiares. Tivesse outro qualquer candidato tido a falta de compostura e de higiene de beijar as mãos indelevelmente sujas de Barbalho, e o céu nos cairia sobre a cabeça, tamanha a grita.

O fato me afronta, como afrontou João Ubaldo, porque, lamentavelmente, o Guia Genial dos Povos não é só mais um candidato, mas sim o presidente do Brasil. E não apenas do Brasil que o elegeu, mas também do Brasil que não o elegeu; ou que, tendo-o eleito, não agüenta mais tanto cinismo, fingimento e falta de pudor.

O cidadão Luiz Inácio até poderia, em tese e entre quatro paredes, beijar a parte da anatomia do cidadão Jader Barbalho que bem entendesse; mas o presidente do Brasil não tem o direito de nos humilhar a todos, publicamente, curvando-se perante tal padrinho.

João Ubaldo terminava o artigo dizendo que, agora, “podemos dizer que já vimos tudo neste mundo”. Precipitou-se. O Guia Genial dos Povos e seu partido se superam a cada dia, e a uma velocidade difícil de acompanhar: na edição de sábado do jornal, anterior mesmo àquela na qual circulou o seu artigo, estava a informação de que os entusiásticos aplausos do plenário da ONU, exibidos pela propaganda eleitoral do PT, não haviam sido dirigidos a Lula, mas a Kofi Annan.

Não me atrevo a dizer que agora, sim, já vimos de tudo, nem me decidi a respeito do que é mais degradante, se beijar a mão de Jader Barbalho ou se apropriar de aplausos alheios.

As ofensas têm cunho diferente, revelador de tipos diversos de imoralidade.

O beija-mão prova que, de fato, para o presidente, os fins justificam os meios; nada é baixo ou podre demais se ajudar à sua permanência no poder. Já as palmas roubadas, que à primeira vista poderiam ser apenas um episódio pitoresco de campanha, se não viessem de cambulhada com a matéria fecal em que chafurdam “os meninos”, revelam uma ausência de escrúpulos e de ética quase naïf, como o caráter do célebre escorpião da anedota.

A impressão que se tem é que, havendo uma forma honesta e uma desonesta de alcançar os mesmos fins, a facção criminosa que cerca o presidente optará sempre pela última, irreversivelmente entranhada no seu DNA.

Isso me assusta, mas não surpreende. A esta altura, depois da sucessão aparentemente interminável de escândalos com que temos sido brindados, dia sim e outro também, a única coisa vinda do governo que ainda poderia me espantar seria um súbito e sincero ataque de ética e honestidade. Como não corremos este risco, o que me espanta mesmo, de verdade, é a mansidão geral com que a revelação de escândalo após escândalo tem sido recebida; e como cidadãos de bem, tementes a Deus e ao fisco, aceitam, sem tugir nem mugir, o Postulado de Paulo Betti.

A provável reeleição de Lula é sinal de que, para boa parte dos brasileiros, a ética e a honestidade definitivamente deixaram de ser valores em si mesmas, para tornarem-se qualidades subjetivas. Não é mais o ato criminoso que conta, mas sim quem o praticou, acobertou ou fingiu ignorar. Aos olhos de quem tem um mínimo de perspectiva histórica, este é um estado de espírito alarmante — para dizer pouco. Quando uma sociedade relativiza o crime, a justiça deixa de ser igual para todos.

Como é sabido, nossa justiça está longe de ser efetivamente igualitária, mas o fato de (ainda) reconhecermos que assim ela deveria ser é um imenso progresso moral.

Não faz muito tempo, achava-se perfeitamente normal que os senhores tivessem direito de vida e morte sobre seus escravos; maridos podiam assassinar as mulheres sem maiores preocupações; prostitutas e homossexuais eram alvo livre.

Abrir mão do princípio fundamental de que todos são iguais perante a lei é aceitar, tacitamente, que a sociedade se compõe de tipos diferenciados de cidadãos; é aceitar que a importância dos atos não se atém a eles, mas depende de quem os tenha praticado. A Humanidade vem pagando caro demais por este filme, mas pelo visto não se cansa das reprises.

Para quem está de fora, imagino que seja interessantíssimo observar o que dirão as bilheterias do Cinema Brasil no próximo domingo.

Independentemente do resultado, sociólogos estrangeiros escreverão resmas de ensaios sobre a alma brasileira e o nosso jeito macunaíma de ser, que tudo releva e nada condena, desde que o candidato seja popular, populista e, naturalmente, “de esquerda”: se as pesquisas estiverem minimamente certas, a quantidade de brasileiros que consideram a ética irrelevante já dará pano de sobra para as mangas.