sexta-feira, agosto 25, 2006

Sérgio Vieira de Mello três anos depois por Jacques Marcovitch



artigo -
O Estado de S. Paulo
25/8/2006

Sérgio Vieira de Mello é um herói brasileiro que não morreu exclusivamente pela Pátria, mas em defesa de toda a humanidade. Esta foi a causa que norteou sua vida inteira, como servidor da paz, nos quadros da ONU.
Faz três anos (19 de agosto) que ele tombou em Bagdá, vítima do terror jihadista, quando iniciava esforços para a construção de uma legítima autoridade iraquiana. O que se tenta, nestas linhas, é resumir a documentação disponível sobre a tragédia e levantar uma hipótese de ação positiva do Brasil em homenagem à memória de um de seus filhos mais atuantes na luta pela convivência harmoniosa entre os países.
Os fatos da vida contemporânea se acumulam de tal modo e com tal velocidade que a memória humana já não pode selecioná-los para compor a história dos povos e deles extrair lições e verdades que sirvam de exemplos. Por isso, é preciso recordar o contexto daquela tragédia e comentar os seus desdobramentos em relatórios e livros mais recentes.
O estudo do material existente leva a perceber a teia criminosa que envolveu a tragédia. O movimento jihadista, antes liderado por Abu Musab al-Zarqawi, foi o principal responsável. Coube a outro fanático, Abu Omar al-Kurdi, construir a bomba colocada no caminhão que explodiu em 19 de agosto de 2003, destruindo o Canal Hotel. O objetivo dos terroristas era minar a formação pela ONU de um Conselho de Governo no Iraque, tarefa construtiva e apaziguadora, na qual Sérgio estava diretamente engajado. Também foi identificado Fahdal Nassim, um argelino suicida que dirigiu o caminhão carregado de explosivos detonado ao lado da representação onusiana.
O líder terrorista Abu Musab al-Zarqawi, morto em junho de 2006, era um jordaniano que combateu no Afeganistão. Tinha-se declarado mentor desse atentado, que provocou a morte de 22 pessoas e 167 feridos, a maioria funcionários das Nações Unidas. Foi também responsável pelos ataques às mesquitas xiitas em Bagdá e Kerbala, matando 181 pessoas, e à Mesquita do Imã Ali, que levou a vida de 105 pessoas. Ele arquitetou a campanha para inibir a construção de um poder local em condições de assumir as rédeas do processo político no Iraque. Assim atuava por integrar o fundamentalismo sunita, que não reconhece os xiitas como verdadeiros muçulmanos.
O relatório sobre as condições de segurança no escritório da ONU em Bagdá conclui que a instituição foi incapaz de garantir a segurança mínima para o trabalho de sua representação. Ficou evidenciado que, até seus derradeiros minutos de vida, Sérgio Vieira de Mello se preocupava com o destino do multilateralismo. É comovedor o depoimento de um jovem soldado norte-americano que esteve perto dele e o avistou, quase soterrado por toneladas de cimento, a formular um apelo: "Don´t let them pull the UN out!" ("Não os deixe expelir a ONU do Iraque!") Em seu livro Mission Inachevée, recentemente publicado na Europa, Gabriel Pichon, auxiliar da ONU em Bagdá, rememora prioridades que o nosso patrício fixara para a sua tarefa no Iraque: proteção das populações civis, combate ao racismo, defesa dos direitos das mulheres e reconquista da independência do povo iraquiano, cujos interesses eram determinantes para a reconstrução do país. Vê-se que ele colocava a nação invadida muito acima de qualquer interesse da potência invasora - o que descaracteriza por inteiro o cruel atentado como ato de resistência.
O Grupo de Estudos das Responsabilidades pela Segurança no Iraque, criado em novembro de 2003 pelas Nações Unidas, emitiu comunicado no qual se declara não ter havido missão precursora da ONU para avaliar as condições naquele país, antes da chegada dos primeiros agentes humanitários. É dito, ainda, que os critérios da gestão de segurança aplicados à sede da ONU em Bagdá eram totalmente deficientes, o que levou o secretário-geral a adotar sanções punitivas, mas tardias, para evitar a perda de vidas humanas.
Enquanto se começa a fazer alguma luz sobre as causas do sacrifício de militantes da paz no Iraque, forças obscuras investem contra o que foi uma bem-sucedida conquista de Sérgio Vieira de Mello. No Timor Leste ressurgiram os atos de violência. A minúscula comunidade de 1 milhão de habitantes enfrenta sérias dificuldades para conter as desordens. Grande parte dos habitantes de Díli está vivendo fora de suas moradias, amedrontada pelos ataques de gangues que incendeiam casas e atacam pessoas.
Importante legado de Sérgio Vieira de Mello a ser preservado é a reconstrução do Timor Leste. Manter ali a democracia e alavancar o desenvolvimento é uma das formas de reverenciar sua memória. Ele muitas vezes declarou que um Judiciário independente e consolidado era precondição para edificar o país. Também sublinhou, em várias oportunidades, a urgência de uma força policial robusta para substituir as milícias. Manter esta agenda positiva é um papel histórico a ser assumido pelo Brasil.
Embora visando apenas um apoio de natureza operacional, o Acordo de Cooperação Técnica entre a República Federativa do Brasil e a República Democrática do Timor Leste invoca, entre outros pressupostos, a relevância de apoiar os esforços daquela jovem nação, como Estado independente, e a necessidade de serem criadas bases duradouras para sua consolidação. Eis dois pontos conceituais de partida para uma cooperação de ordem mais ampla, com o propósito de salvar da barbárie o que foi tão laboriosamente construído por um grande brasileiro.
Recordar a morte de Sérgio Vieira de Mello, cultivar sua memória e preservar o seu legado reverencia todos aqueles que dedicam sua vida a lutar pela construção da paz.