O problema não é criar exceções, é saber qual a aceitável. Em 29 de junho deste ano a Suprema Corte dos EUA decidiu que Salim Ahmed Hamdan, prisioneiro de Guantânamo, tem direito a habeas corpus e à proteção da Convenção de Genebra, negados por uma lei aprovada durante o governo Bush. Também afirmou que o governo agiu ilicitamente ao submetê-lo a uma comissão militar criada especialmente para tratar dos prisioneiros de Guantânamo. Afinal, seus crimes tiveram lugar antes de ela existir. Além disso, considerou ilícita a criação da comissão. Dentre seus poderes, estava a possibilidade de aceitar qualquer prova, inclusive depoimentos obtidos sob tortura, e manter sob sigilo fatos e provas reunidas para incriminar os acusados. A decisão foi um golpe na política de combate ao terrorismo de Bush. Sua estratégia inclui a criação de medidas excepcionais para diminuir a proteção de direitos fundamentais e facilitar a investigação e a punição dos culpados. Esta estratégia não é invenção americana. Na Europa e na América Latina, fala-se de um Direito e de um Processo Penal com "velocidade" distinta, mais rápida e com menos garantias, aplicável a crimes como o terrorismo. É fácil para um democrata recuar horrorizado diante de propostas assim. Ainda mais em nosso País que não fez o dever de casa no combate ao crime organizado e enfrenta problemas de corrupção policial e judicial. Mesmo assim, é preciso engolir em seco e refletir antes de desqualificar a criação de exceções às regras. Não se trata de defender a política de segurança do agente 007: licença para matar. Mas é preciso avaliar a eficácia de algumas regras "normais". Nosso ordenamento está repleto de exceções à regra. A defesa da mediação e conciliação na esfera penal e a extinção da punibilidade de crimes tributários pelo pagamento são dois exemplos. O problema não é criar exceções, mas saber quais delas são aceitáveis. Ainda: é preciso diferenciar regimes de exceção, como o de Guantânamo, de medidas pontuais. Estas, podem ser defensáveis sob certas circunstâncias. Bruce Ackermann, professor de Direito de Yale, insuspeito de qualquer simpatia por Bush, lançou este ano "Before the Next Attack". O livro defende a criação de um regime constitucional de emergência, altamente vigiado e controlado. Não se trata de abrir mão de garantias e direitos fundamentais, mas de dotar a democracia de poderes para lidar com o problema do terrorismo. Diante da proposta, o leitor tem pelo menos duas opções. Pode concluir que se trata da obra de um traidor da democracia ou pensá-la como uma resposta à retórica governamental da "guerra" ao terrorismo. O terreno é escorregadio e, por isso mesmo, a coragem do livro deve ser louvada O debate irá avançar quando pararmos de pensar em abstrato e falar por slogans. Melhor discutir medidas concretas. Por exemplo: os líderes do PCC devem poder comunicar-se sigilosamente com seus advogados e familiares? Como impedir que a prisão se torne o quartel general do crime? Deve-se proibir a comunicação desses prisioneiros com o mundo exterior? É claro que não, mas talvez submetê-la à vigilância de autoridades, sob a fiscalização da OAB, com dever de sigilo absoluto, exceto sobre o eventual planejamento de ações ilícitas. Adotar medidas que destoam das regras gerais é tapar o sol com a peneira? É dar poderes demais a um Estado despreparado para lidar com o problema? Pode ser. Mas mesmo em Estados ricos, medidas assim têm sido adotadas. Há versões autoritárias, como nos EUA. Resta saber se é possível e necessário pensar em outras. Para um democrata é inaceitável pensar a exceção como ação trivial e secreta das autoridades. Mas é razoável pensar em casos restritos e controlados democraticamente. Para fazer avançar o debate é preciso seguir o exemplo de Ackermann e pensar para além do trivial. Assim, seremos capazes de refletir por outro viés, sem abandonar a defesa da democracia. O incômodo que sentiremos ao nos arriscar para além de argumentos conhecidos leva o nome de filosofia. |