segunda-feira, agosto 28, 2006

João Ubaldo Ribeiro Campanha, que campanha?

O ESTADO

Algumas pessoas me têm dito que eu ando tirando o corpo fora de assuntos políticos, estou com medo de ser tido como participante da campanha de Fulano ou Beltrano e assim por diante. Tudo besteira. Eu sento aqui toda semana e escrevo o que me parece apropriado, ninguém me chateia. Quando me pedem adesão pública a alguma candidatura ou partido, respondo que não posso e mando cópia da resposta para o jornal - eis que poucas coisas me tiram mais do sério do que alegações de que estou servindo de alto-falante para alguém ou alguma organização. Posso até estar, eventual ou involuntariamente, quando nossos pontos de vista coincidem. Mas compromisso, somente o famoso quão fora de moda compromisso com a consciência, que mantenho porque não tenho mais idade de mudar para me adaptar aos novos tempos.

O problema, portanto, não é que eu fuja do assunto, é que ele foge de mim. O jovem que só agora começa a saber o que é uma campanha política terá uma noção inteiramente diferente da dos mais velhos. Até parece que não há campanha nenhuma em andamento, tamanha a letargia reinante. Claro, o presidente bravateia como sempre, mas todo mundo já se acostumou e cada vez mais gente muda de canal ou desliga a TV, não por nada, mas porque não gosta do “Vale a pena ver de novo”. Ninguém vibra, ninguém se empolga, ninguém sequer, que eu veja, discute as eleições. Fez-se um debate entre os candidatos e, por mais que os responsáveis pelo programa se esforçassem, foi tudo tão chocho que ninguém se lembra de nada. Até porque o candidato principal, que, antes de ser eleito, esbravejava contra seu oponente porque este não aceitava o debate, não compareceu, nem se preocupou muito com a incoerência, algo com que, aliás, cada vez menos se preocupa, como se vê em sua festiva aparição junto a aliados como o bispo Crivella, em cuja companhia ele disse mais ou menos que se aproximou de Deus.

Todo mundo comenta que ele sabe o que diz que não sabe, mas se é obrigado a usar palavras como “alegadamente”, porque, como ele mesmo retruca com ares de jurisconsulto calejado, não há provas. Portanto, ninguém sabe, só pode fazer alegações. Eu mesmo não tenho prova de nada e, em função disso, peço ao jornal que, se solicitado por algum leitor insatisfeito, forneça-lhe quantos “alegadamentes” forem necessários, não sou homem de violar a lei.

É só alegadamente, por exemplo, que se pode qualificar o presidente como o “Pelego do Século”, ou quiçá, em expressão mais a seu gosto, o “Maior pelego que o mundo já viu”. Ele construiu a mais importante organização sindical de nossa história e depois foi protagonista da extraordinária criação e do crescimento do PT. Mas, depois, ele cada vez mais se dissocia do PT, e se põe a funcionar como mais um dos elementos da máquina viciada, corrupta e irresponsável que vem sendo mantida há séculos. O objetivo, afinal, não era combatê-la, mas assumir seu controle - e exatamente nos mesmos termos, com as mesmas práticas, as mesmas jogadas, o mesmo fisiologismo. Ele próprio deixou isso claro, em sua famosa entrevista francesa. O PT adotava práticas comuns na política brasileira, que estavam estranhando? Fui olhar no Houaiss essa acepção de “pelego”. Diz lá: “agente disfarçado do governo que procura agir politicamente nos sindicatos de trabalhadores”. Não estou, nem alegadamente, insinuando que o presidente foi agente de governo nenhum. Mas, vista de uma perspectiva absolutamente contemporânea, sua atuação equivaleu, em última análise, à de um agente das mazelas que condenava no sistema. Montou o que seria uma máquina formidável de consecução dos grandes ideais brasileiros, a única via para as mudanças com que todos contavam, pelo menos para algumas das reformas básicas que por aí se arrastam desde que nos entendemos: o PT, o partido diferente dos demais, o da esperança, o do caminho da redenção. Não estou sugerindo que ele deveria fazer uma revolução, pois não foi uma revolução que o levou ao poder. Elegeu-se constitucionalmente, dentro de limites jurídico-institucionais. Mas, dentro desses limites, muito poderia ser feito, ou pelo menos tentado. Em vez disso, o PT foi entregue numa bandeja ao sistema, que logo o digeriu e o integrou a ele.

Essa máquina formidável não estava destinada, afinal, a uma conquista ideológica, a ruptura de espécie alguma, mas ao mero exercício do poder e desfrute de suas benesses, das tangíveis, como as mordomias, às intangíveis, que fizeram Kissinger qualificar o poder de “afrodisíaco”. A palavra “pelego” ganha nele nova dimensão, quiçá grandiosa, pois não seria o pelego do governo ou de um partido, mas o pelego de todo o sistema social, político e econômico. Elegeu-se como paladino de mudanças sistêmicas em nossa realidade. Hoje, é beneficiário da permanência desses males sistêmicos, neutralizou o PT como reformista e talvez lhe tenha restringido a voz crítica para sempre. A mesma autoridade moral de antigamente o partido nunca mais terá.

Agora ele diz que as “elites” o repudiam, mas o “povo” o quer. Vamos entrar nessa, para ver. As elites já mostraram que o temível sapo barbudo quer mesmo é incorporar-se a elas (e, o que é chato, isso nunca vai acontecer, como explicará privadamente qualquer quatrocentão brasileiro), já se serviram dele, até mesmo mostrando que aqui se pode eleger um operário sem educação formal e ganhar mais dinheiro do que nunca, já desmoralizaram os argumentos dele quando oposição - para que precisariam mais dele? Agora podem escolher um mais bem afinado com seu figurino e que não seja tão besteirófono. Mas, se der ele de novo, tudo bem, qualquer coisa está bem, nada vai mudar mesmo, a campanha é para escolher entre seis e meia dúzia. Quanto ao povo, quem quiser que procure suas melhoras, como ele fez e está fazendo.