Artigo - Demétrio Magnoli |
Folha de S. Paulo |
24/8/2006 |
O SOCIÓLOGO português Boaventura de Sousa Santos é um dos tantos intelectuais que exercita o duplipensar, defendendo os direitos humanos em Israel com igual vigor com que aplaude a repressão em Cuba. Há dias, ele escreveu na Folha que os negros "são pobres porque são negros", ecoando a doutrina difundida pela Secretaria da Igualdade Racial. Essa "verdade oficial" é o alvo da crítica precisa de Ali Kamel no livro "Não Somos Racistas" (Nova Fronteira, 2006). Kamel confia na força dos argumentos e nunca cede ao lugar-comum. Primeiro, desmonta a operação básica dos racialistas: a junção das categorias censitárias "pretos" e "pardos" numa "raça negra" que desafia tanto a ciência como a consciência dos brasileiros, expressa na autodeclaração de cor. Depois, desnuda uma a uma as manipulações estatísticas da moda, demonstrando que a pobreza no Brasil não é um fruto do racismo. Entre tantos, um número deveria provocar reflexão nos racialistas: os pobres que se declaram "brancos" somam 19 milhões (são 4 milhões os pobres que se declaram "pretos"). Na lógica de Boaventura de Sousa Santos, "os brancos são pobres porque são brancos", pois não? O título do livro não é uma negação de que o racismo existe em todo lugar onde há seres humanos, mas um gesto de indignação contra a sugestão de que o ódio racial seja um componente da identidade brasileira. Essa sugestão, contudo, desempenha papel crucial no empreendimento racialista de construção de uma nação dividida em duas "raças" polares. Argumentos não são bem vistos entre os gerentes da linha de montagem das raças. Um sociólogo americano atuante no Brasil indicou o caminho ao classificar os críticos das leis raciais como "elite branca". Em recente debate na Unicamp, um dirigente do Movimento Negro Unificado apontou os "judeus" como articuladores da carta pública contra essas leis. Em Salvador, semana passada, líderes de manifestação pró-cotas raciais exigiam a "eliminação" dos "demônios brancos". Em tempos de calúnia fácil, escrever tal livro é um ato de coragem, ainda mais se o autor ocupa um cargo executivo no jornalismo das Organizações Globo. Uma coragem cívica, necessária. Em Ruanda, gritos isolados contra a "elite tutsi" prenunciaram o genocídio. Estamos bem longe disso. Mas, quando o Estado define identidades raciais, explorando o desamparo e o ressentimento, tudo se acelera. As novas fronteiras legais, traçadas entre os pobres, passam dentro dos ônibus, das escolas públicas e das favelas, produzindo inimigos ilusórios, mas perigosamente próximos. É preciso deter os incendiários antes do incêndio. |