terça-feira, julho 25, 2006

Míriam Leitão - Imposto sem fato



Panorama Econômico
O Globo
25/7/2006

A Receita Federal sempre foi criativa e conseguiu, mesmo nos anos de baixo crescimento econômico, aumentar de forma impressionante a arrecadação e a carga. Mas agora ela está pensando em algo realmente grande: a criação de um imposto sem fato gerador. Nasce da decisão de mudar a lei cambial mantendo a CPMF.

A lei da cobertura cambial brasileira é velha. O que é raro. As leis no Brasil duram apenas uma temporada. Essa está aí desde 1933. De lá para cá, aconteceram várias crises cambiais, seguidas por períodos de queima de reservas, mas ela sempre esteve em vigor. Determina que os exportadores troquem por moeda brasileira todas as divisas da exportação, e isso significa trazer os dólares e trocá-los aqui. Essa transação financeira paga a CPMF.

O ministro Guido Mantega tem prometido mudar a lei de cobertura cambial. Primeiro, parecia animado a mudá-la integralmente; depois, circulou a notícia de que alguns setores teriam a vantagem e outros não e, por fim, ele tem dito que a mudança será parcial. Fazer uma “meia mudança” é melhor do que mudar totalmente “uma lei centenária”. Na verdade, septuagenária, o que é muito diante da baixa expectativa de vida das leis no Brasil.

Só que a Receita levantou uma questão: como se pode viver sem o imposto que seria recolhido caso a lei não fosse alterada? Os números para o montante que se perderia vão dos R$ 600 milhões ao R$ 1 bilhão. A Receita diz que não pode perder arrecadação. Foi aí que sua providencial criatividade foi posta à prova. Ainda não se sabe o que sairá daquele centro criativo, mas o novo ser está sendo chamado de CPMF virtual. Ou seja, o dinheiro não virá, a transação financeira não será feita, mas o imposto será cobrado.

Um mundo de possibilidades se abre agora diante da Receita Federal. Ela inventou o imposto sem fato gerador. Há muito, já havia criado o fato gerador com dois impostos. Por exemplo: o lucro das empresas paga IRPJ e contribuição sobre lucro líquido. Dividindo-se assim o ônus tributário em dois impostos, um chamando “imposto” e outro chamando “contribuição”, isso dá uma enorme vantagem ao governo. Além de contribuição ser uma palavra menos impositiva, tem a vantagem de não ter que ser dividida com outros entes federativos. Mas agora essas artimanhas parecem até banais perto do que a Receita começou a criar: o imposto sem fato gerador.

Imagine só as largas avenidas abertas à frente da Receita Federal. Ela estará cobrando um imposto de transação financeira de uma transação financeira que não houve porque a nova lei de cobertura cambial permitirá que o dinheiro não venha.

Dando certo essa nova vertente tributária, outros tributos poderão ser criados. Poderia ser cobrado o imposto de renda sobre a renda que poderia ser auferida pelo cidadão caso todas as suas ambições salariais fossem realizadas. Ou um imposto sobre produtos que não foram industrializados porque, na verdade, o país não cresceu como deveria. Imposto sobre circulação de mercadorias que não circularam porque ficaram encalhadas nas prateleiras. Poderia ser cobrado, também, imposto sobre o lucro que as empresas não tiveram, porque o país cresceu menos do que esperavam elas em seus planos de negócios. Poderiam ser cobradas contribuições trabalhistas sobre os empregados que a companhia demitiu nos últimos dez anos. Eles não estão mais lá trabalhando, tiveram que ser demitidos nos planos de ajuste de despesas, mas, se estivessem lá ainda, receberiam salários e, se eles não estão lá para receber os salários, o problema não é da Receita; ela não pode é perder receita.

Este é o grande axioma: Receita não perde receita em hipótese alguma. Sendo assim, ela passará a recolher impostos sobre fatos geradores virtuais, que poderiam ter ocorrido caso as hipóteses otimistas se confirmassem.

O Ministério da Fazenda acha que o empresário terá uma grande vantagem por não ter que internalizar os dólares para trocá-los. Como se esse tipo de transação ocorresse no mundo físico e não no eletrônico. Exceto no caso de certas malas mal afamadas — ou cuecas, idem — ninguém tem que carregar fisicamente os dólares. É uma transação eletrônica que exige da empresa apenas uma ordem bancária. Portanto, o que o empresário ganharia com a mudança na lei cambial seria deixar de pagar o imposto sobre a transação. A CPMF virtual sobre a transação financeira de Itararé — aquela que, como a batalha homônima, não houve — é realmente uma nova fronteira tributária.

No limiar desse novo mundo, pode-se dizer que o limite para a carga tributária não existe. Imagine só o mundo de dinheiro que a Receita arrecadará quando puder cobrar imposto sobre o fato que não houve. O mundo do não é muito mais rico que o mundo do sim. A carga poderia ser 100%, 200% do PIB, porque seria cobrada sobre o PIB que não existe, mas que poderia existir caso existisse. Definitivamente o mundo virtual é bem mais promissor. A Receita está entrando nos seus umbrais. Preparem-se, contribuintes.