terça-feira, julho 04, 2006

Míriam Leitão - Agora é só Europa

Panorama Econômico
O Globo
4/7/2006

Procuro uma palavra para descrever o principal erro de Parreira e de
sua equipe. E o que mais me irrita é que encontro sempre uma palavra
francesa: blasé . Foi este o erro: todos estavam blasés ; sem garra,
sem vontade. Seria em português: descompromissado. Mas é uma falta de
compromisso não por desleixo; é por se sentir superior.

Escrevi aqui que temo as vitórias antecipadas. O Brasil se comportava
— treinador, time, torcida — como se estivéssemos indo para a
Alemanha para voltar com o troféu. Era só o trabalho de ir buscar.
Como disse Parreira: “Eu não estava preparado para a derrota.”
Deveria estar. O favorito tem uma missão a mais: restaurar
diariamente o sentimento da humildade. Do contrário, perderá.

A Copa de 2002, nós a ganhamos numa manhã de domingo, ensolarada e
vibrante. A de 2006, perdemos numa tarde fria e desenxabida. Existem
vitórias grandiosas e terríveis derrotas. São todas memoráveis. Todos
os brasileiros sabem falar da tragédia do Maracanã em 1950. Ficou na
genética do povo. O difícil de aceitar é uma derrota assim, sem luta.
O chapéu de Zidane em Ronaldo foi uma jogada fenomenal. O abaixar do
Roberto Carlos na jogada que definiu a partida, um emblema do
desinteresse.

Entenderia uma derrota como a da Argentina ou a da Inglaterra. Com
choro, desespero. Mas aquela saída silenciosa e blasé do time
brasileiro foi um golpe a mais. Não era um jogo qualquer: era a Copa
e era a França de outras dores. Era o dedo em velha ferida. Merecia
lágrima, aflição. É claro que houve exceções, de bravos jogadores
brasileiros, que não foram nada blasés , mas a força tinha que ser da
equipe toda.

A hora não é de consolo, estamos inconsoláveis, mas vamos fazer uma
lista do que nos livramos: primeiro, da cara blasé de Parreira, na
vitória ou na derrota. Na vitória contra Gana, o jogo acabou e não se
viu nele sinal de vibração. Ficou ainda pior o contraste com o
apaixonado, ensandecido, Felipão. Para quem acha que futebol é um
jogo apaixonante — e no Brasil quase 180 milhões acham — aquela cara
de nada dá nos nervos.

Vamos nos livrar do uso político que o presidente Lula iria fazer da
vitória. A ida da seleção foi usada por ele na teleconferência em que
os jogadores posaram de vaca de presépio, proibidos de fazer
perguntas. Imagina o show de manipulação que seria a vitória.
Agüentaríamos tudo pela vitória, mas a hora é de consolação.

Eu, que ficarei menos em frente à televisão, terei menos vezes o
desprazer de assistir àquela propaganda da Vivo em que uma mocinha
bonitinha e burrinha narra os passes do “fortão” para o “da perna
bonita”.

Gosto de saber que me livrarei de mais um: “Eu te amo, Regina.” Nada
contra a diva de Cafu, mas alguém capitaneando um time que representa
um país louco por futebol não pode usar o momento de levantar a taça
para fazer uma declaração pessoalíssima. É a apropriação particular
de uma vitória coletiva. Ele levantou a taça por todos, não por ele.

Livraremo-nos também da deificação de jogadores. Não são deuses, são
jogadores: bons e falíveis.

Tive uma premonição. Na manhã de sábado, depois de uma noite de febre
por uma gripe que me pegou pela garganta, li a manchete do GLOBO: “O
Brasil é todo o continente.” E li, previ, temi uma manchete assim no
dia seguinte: “Agora é só Europa.” Não foi esse o título, mas foram
esses os fatos.

Talvez tenha sido um sentimento coletivo. Antes do jogo, num
intervalo entre a febre e o mal-estar, fui comprar cerveja no
supermercado porque teria visitas. Aproveitei para consultar as
previsões do carregador que me ajudou com as compras. Ele carregava
uma mágoa.

— Não gostei do Thierry Henry dizer que aqui as crianças aprendem
futebol porque não estão na escola — disse-me.

Depois me contou a história dele: passou para história na UFRJ, mas
não agüentou mais de dois meses. Era greve o tempo todo. Pagou uma
universidade particular e está se formando. Conseguiu estágio numa
escola pública que também está em greve. Por isso faz bico no
supermercado, sonhando com o mestrado em antropologia. Rapaz de luta
e garra, nada blasé .

Agora é só Europa. Podemos torcer pelo time de nossa preferência com
a vantagem de não ter que sofrer tanto. A maioria torcerá por Felipão
amanhã e a nova família Scolari, pois, pois. Ele é tudo, menos
blasé . Podemos nos juntar à vasta colônia italiana em São Paulo e
ver com simpatia a Azzura. Podemos até torcer pela França para dizer:
fomos eliminados pelo campeão. Isso torna a derrota mais respeitável.
Podemos torcer pela Alemanha, que vive um momento mágico: 60 anos
depois da derrota na Segunda Guerra, eles ainda temiam o amor à
pátria, o orgulho de cantar o hino, exibir a camisa, pintar-se das
cores nacionais. A Alemanha, que caiu diante de nós em 2002, que teve
a fortaleza inexpugnável de Oliver Khan invadida por nós, que
preparou uma copa bonita, que torceu pelo Brasil, talvez mereça a
vitória.

Quero pensar nas lições de 2006 para serem aplicadas em 2010: nenhuma
vitória é ganha de véspera, um ajuntamento de craques não é
necessariamente um time, jogadores que pensam apenas em seus
recordes, seus egos e grifes perdem o principal. Aprendo que o Brasil
não sabe, não pode, não entende o que é ser blasé . Por isso é tão
difícil encontrar para a palavra francesa nossa exata tradução.