O GLOBO
A tese do deputado Miro Teixeira de que o artigo XIV da Constituição Federal, em seu parágrafo 10, permite que seja impugnada a posse de um político eleito que tenha contra si provas “de abuso do poder econômico, fraude ou corrupção” através de uma ação de impugnação de mandato eletivo autônoma, que não depende da existência de processo anterior, e muito menos do trânsito em julgado, é uma resposta encontrada na própria Constituição para casos como os de políticos envolvidos em escândalos como os do mensalão ou dos sanguessugas, que permanecem na política sendo reeleitos apesar de responderem a diversos processos, transmitindo uma sensação de impunidade que desnorteia a sociedade.
Essa aplicação direta das normas constitucionais, independentemente da existência de uma lei específica, é uma tendência nova no direito constitucional e já prevaleceu no caso do nepotismo, em que a tese do Tribunal de Justiça do Rio era que não havia lei nem definindo o que era nepotismo, nem o impedindo. O advogado Luís Roberto Barroso sustentou em ação no Supremo Tribunal Federal que o princípio da moralidade que está na Constituição já produz como conseqüência a vedação do nepotismo, não havendo necessidade de lei para explicitar a proibição.
Constitucionalista respeitado, Barroso escreveu um trabalho recentemente onde diz que “o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. Nele se condensam as promessas da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, preservação e promoção dos direitos fundamentais, realização da justiça material, respeito à diversidade. Ao longo desse período, o direito constitucional — e o direito de uma maneira geral — passou por um processo profundo de transformação, que afetou drasticamente o modo como é compreendido e praticado”.
Foi esse entendimento do direito constitucional moderno que norteou a ação contra o nepotismo. Apesar disso, porém, Luís Roberto Barroso acha que, em situações que envolvam “uma restrição drástica a um direito fundamental como é o exercício de um direito político, essa interpretação não deve prevalecer”. No caso do nepotismo, diz ele, “não estava em jogo um direito fundamental, pois ninguém tem um direito fundamental de nomear parentes no trabalho”.
Mesmo correndo o risco de abusos, Barroso acha que “ninguém pode ser impedido de se candidatar, a menos que haja uma expressa interdição”. Na ausência de uma condenação, ele admite até “flexibilizar a ponto de não exigir o trânsito em julgado, mas se não houver um elemento objetivo, uma condenação em primeira instância pelo menos, você passa a ficar à mercê da total discricionariedade do juiz eleitoral”.
O deputado federal Miro Teixeira, que participou da elaboração da Constituição de 1988, diz que “o constituinte fez surgir a disposição do parágrafo 10 exatamente para prevenir eventual e futura omissão da lei complementar prevista no parágrafo 9. A soberania popular tem que ser, no extremo, preservada pela ação de impugnação de mandato eletivo, ação autônoma, determinada por dispositivo auto-aplicável, sem limitações temporais quanto aos atos praticados”.
Miro também contesta a interpretação de que o parágrafo 10 do artigo XIV prevê hipóteses (abuso de poder econômico, corrupção ou fraude) ocorridas no período eleitoral. Segundo ele, “não está escrito que os crimes são puníveis se exclusivamente praticados no período eleitoral”. Se assim fosse, argumenta Miro, o parágrafo 10 seria inútil, “já que tal ação deveria estar prevista na lei complementar 64 a que se refere o parágrafo 9 , ou diretamente no próprio parágrafo 9. Trata-se de disposição constitucional cuja primeira e definitiva leitura não deixa margem a dúvidas”, assevera.
Além do mais, acrescenta Miro, os atos praticados no período eleitoral podem ser argüidos na impugnação da diplomação. No terreno político, Miro diz que a questão que se coloca é a seguinte: qual é a alternativa a essa proposta para evitar a desqualificação do próximo Congresso, respeitado o devido processo legal?.
O advogado Marcelo Fontes, especialista em legislação eleitoral e que já foi juiz eleitoral do TRE do Rio por quatro anos, tende a concordar com Miro, embora reconheça que a exigência do “trânsito em julgado” encontra respaldo em boa parte dos juristas e é uma tese respeitável. “Hoje, a sociedade não agüenta mais tanta imoralidade, escândalos atrás de escândalos e essas pessoas se reelegendo exatamente com base nesse trânsito em julgado, que pode levar anos. Hoje há um clamor público muito grande para ser dada uma interpretação mais extensiva a esse dispositivo”.
Segundo Fontes, há quem considere que “pela questão da impessoalidade, da moralidade, o processo eleitoral só deveria abrigar pessoas sobre as quais não pese nada”. Ele admite que o dilema atual da sociedade é “permitir que um eventual inocente seja afastado do processo eleitoral porque há provas contra ele, ou permitir que um culpado seja eleito e não possa ser afastado pela presunção de inocência”.
Há certamente o perigo de alguém incriminar um inocente apenas por uma disputa política, ressalta Fontes, para quem o eleitor deve ser o grande juiz na hora de votar. Mas “a sensação de impunidade é enorme e a tendência hoje é por uma renovação da interpretação da legislação”. A consulta do deputado Miro Teixeira ao TSE representa essa encruzilhada em que se encontra a Justiça, diante da necessidade de uma satisfação à sociedade e da ameaça de que o futuro Congresso já saia das urnas desmoralizado pela eleição de políticos envolvidos nos diversos escândalos acontecidos nos últimos anos.