domingo, julho 30, 2006

Mailson da Nóbrega Os contratos da América Latina e do Brasil

ESTADO

A última reunião do Mercosul evidenciou os contrastes da região. A politização dos temas, a perversão do bloco (como disse a The Economist), a presença de Fidel Castro e a “cúpula alternativa” ao G-8 foram a cara da velha América Latina. A nova realidade esteve nas faces dos presidentes do Uruguai e do Chile. Não disseram tolices.
Apesar do espetáculo, parte da região tem-se distanciado do centralismo político e das políticas públicas que buscavam vencer a pobreza com a substituição de importações e a intervenção estatal ampla na economia.

Existem agora distintas situações e não mais a gangorra geral entre democracia autoritarismo. A democracia se firmou no Chile, no Uruguai e na Costa Rica e parece consolidar-se no Brasil, na Colômbia e no México. Enquanto isso, a Venezuela retrocede ao pior populismo e a Bolívia flerta com o socialismo burro.

O passado está vivo em certos corações, a inflação segue adorada por muitos e o intervencionismo arcaico sobrevive na Argentina e nas demandas para que o Estado determine os juros e o câmbio no Brasil. Ao mesmo tempo, a economia orientada pelo mercado, ancorada em fortes instituições e num Estado eficaz, é a cara do Chile. Ali, a democracia vibrante e a moderna economia de mercado são o melhor exemplo da América Latina que tem futuro.

A região já foi mais rica do que os EUA e Canadá. Nos séculos 16 e 17, éramos o futuro. Aqui estavam ingredientes que na visão dos mercantilistas geravam riqueza, quais sejam, o ouro e a prata encontrados pelos conquistadores espanhóis e portugueses. Mais tarde, o açúcar, explorado com a mão-de-obra escrava, exerceria o mesmo papel no Brasil e no Caribe.

Na América do Norte de então, colonizada por ingleses, holandeses e franceses, podia-se obter peles de animais, peixes e madeira, o que não bastava para sustentar economias prósperas. Em vez de civilizações que extraiam ouro e prata, havia tribos esparsas que atraiam mais a atenção de missionários do que de comerciantes. O clima e o solo não eram propícios ao cultivo da cana-de-açúcar.
Os ventos mudaram em favor dos EUA e do Canadá a partir do fim do século 18, quando a riqueza começou a vir do mercado livre, impulsionado pela democracia e por instituições que garantiam o direito de propriedade, o respeito aos contratos e a concorrência. Nascia o ambiente de confiança e previsibilidade essenciais para um outro modelo de crescimento, baseado em uma estrutura de incentivos para investir, inovar e promover ganhos de produtividade. Era o capitalismo.

No último quartel do século 20, a falência do modelo latino-americano e as desigualdades sociais que engendrou começaram a gerar as condições para que países como o Chile trilhassem o caminho que havia levado americanos e canadenses ao êxito. Em muitos quadrantes, chamou-se essa estratégia de neoliberalismo, mesmo diante do sucesso chileno.

O Brasil, ainda em transição para uma economia orientada pelo mercado, padece dos mesmos contrastes da América Latina. Aqui, convivem, de um lado, visões de um futuro sustentado por instituições e por um Estado eficaz e, de outro, a defesa do velho desenvolvimentismo, impregnada de ideologia estatizante. Nada é mais representativo desse processo do que o governo Lula, moderno e competente na gestão macroeconômica, anacrônico e medíocre em muitas outras áreas.

O Brasil, da mesma forma que o México, está com um pé no mundo já habitado pelo Chile e outro ainda atolado nas velhas tradições centralistas e intervencionistas da América Latina. O Uruguai parece mais perto do Chile. O Peru seguirá os mesmos passos se Alan Garcia tiver aprendido as lições de seu primeiro e desastrado mandato. A Venezuela e a Bolívia podem se dar mal, reproduzindo tragédias conhecidas. A Argentina parece não conseguir livrar-se do fantasma peronista.

Como vão ser resolvidos os contrastes do Brasil? O pé no passado migrará para o outro lado? O pé na nova realidade dará uma marcha à ré? A meu ver, os dois pés tenderão a pisar o futuro, como no Chile. Nesse cenário, que vai requerer complexas reformas, manifestações como a da reunião do Mercosul farão parte do folclore gerado por políticas externas terceiro-mundistas, como a do governo Lula, ou se limitarão aos países que se manterão na velha tradição latino-americana. Se Deus quiser.