domingo, julho 23, 2006

DANIEL PIZA ESTADO Dos sarrabulhos aos blogs

A noção comum diz que folhetins eram os romances publicados em capítulos, como os de Alexandre Dumas e Eugène Sue, tão populares em suas épocas quanto as telenovelas ou "sitcoms" hoje em dia. Mas folhetins eram também as seções, em geral no rodapé da primeira página e com corpo tipográfico maior, que misturavam crônicas sobre as artes, notas, aforismos e até receitas e anedotas políticas. Foi nessa época que os jornais, até então muito parecidos com livros ou panfletos, começaram a ganhar páginas de "variedades" e as revistas ilustradas começaram a surgir com o mesmo cardápio, bastante voltado ao público feminino então em expansão; a inglesa The Spectator e a brasileira O Espelho, por exemplo, falavam de moda e dos costumes urbanos no mesmo espaço em que discutiam Balzac, Shakespeare ou Darwin.

Foi dessa miscelânea de temas e gêneros, cuja proposta era tirar os debates das academias e trazer para os cafés, que nasceu o jornalismo cultural. Martins Pena, um dos primeiros grandes articulistas nacionais, dizia que os folhetins de não-ficção eram "sarrabulhos lítero-jornalísticos" (sarrabulho era um prato português feito com miúdos de porco, antecessor da feijoada, e metáfora de bagunça, mistura). Eram saladas em que os frutos dos assuntos "intelectuais" como letras e filosofia se embaralhavam com as folhas do que era considerado "fútil", como o último estilo das saias de tafetá. Boa parte da modernidade pode ser explicada por essa busca de aproximar, como dizia Nietzsche, o conhecer e o viver. Idéias fazem parte do cotidiano; valores estão em jogo constante na sociedade, não pairam num plano abstrato aonde só os doutos chegam. Gente como Karl Kraus, Bernard Shaw e H.L. Mencken é produto dessa mentalidade. Até Barthes e Adorno sabiam que a crítica cultural ou fala dos fenômenos coletivos ou morre.

Ao longo do século 20, com a modernização dos jornais, que se tornaram saudavelmente mais objetivos e autônomos, e a tentativa de conversão da crítica em ciência acadêmica, com grandes contribuições ao estudo dos livros e das artes, algumas coisas se perderam sem necessidade. Com o atropelo da indústria do entretenimento, o jornalismo cultural começou a ficar sem impacto, submetido à agenda de eventos, e os textos se tornaram cada vez mais burocráticos e balcanizados. O tom autoral - em que se pode reconhecer o autor mesmo sem olhar sua assinatura -, a fusão de gêneros e os diálogos entre as artes e os fatos, como faziam os velhos e bons folhetins (Ao Correr da Pena, de José de Alencar, A Semana, de Machado de Assis, etc.), viraram minoria. Mesmo na Alemanha, onde as páginas culturais dos jornais até hoje se chamam Feuilleton, resta pouco dessa liberdade temática e estilística.

No Brasil, as crônicas passaram a abandonar os debates da hora, coisa que só Rubem Braga era capaz de fazer sem cair no vazio, e a análise crítica foi se tornando exclusiva dos professores universitários. Hoje é comum ouvir que jornais devem informar, e não formar, como se essas esferas fossem separáveis, e que um sujeito que trata de literatura, artes ou política não deve "baixar" a temas como futebol, telenovela e moda. Machado, que inovou ao levar tudo isso para a ficção, dizia que não agradaria nem aos graves nem aos frívolos, as duas modalidades dominantes na opinião pública. Mas todos que ainda escrevem com propriedade sobre diversos assuntos - Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor, Roberto Pompeu de Toledo, Marcelo Coelho e outros, para ficar por aqui - não raro são os mais lidos, e pela mesma razão.

Quanto a mim, o que sempre me fascinou na tríade Millôr Fernandes, Paulo Francis e Ivan Lessa, que coincidiu apenas no Pasquim, foi que fizessem isso na mesma coluna, recorrendo à combinação de textos longos e breves (no caso de Millôr, junto a desenhos ainda subestimados como arte visual), em versões modernas do folhetim oitocentista. E por isso gosto cada vez mais desse novo-velho gênero que é o blog, o diário virtual, feito de "posts" ou notas ("Tomar notas é mais difícil que escrever", dizia Ivan Lessa) organizadas por data, que estou praticando desde o mês passado. Há blogs temáticos, como o de Alex Ross sobre música ou Instapundit (Glenn Reynolds) sobre política, para citar dois americanos que acompanho, e há blogs de criação literária, como o do poeta Fabrício Carpinejar. Mas o espírito que rege a todos é o da reação ao dia-a-dia, desprendida, pessoal, conversacional, de um cidadão que vive sob o bombardeio da mídia e sabe que os nexos não se bastam em disciplinas.

Era uma questão de tempo para que emplacassem, graças às centrais da rede virtual que são ainda os grandes grupos de comunicação, e se tornassem viáveis para quem rejeita escrever de graça. Como Ricardo Anderáos disse no caderno Link da semana passada, é impossível não se viciar. Trabalha-se muito; tudo que você vê, lê ou escuta pode ser material; mas anos de estudo sobre cada tema devem convergir para que a opinião emitida tenha fundamento, e não seja o palpite, a rotulação emotiva típica dos adolescentes e, pois, de muitos blogs por aí. E, como disse Juca Kfouri, agora blogueiro, é preciso maturidade para assimilar os golpes baixos que muitos leitores são capazes de dar, ao trocar argumentos por insultos (ou então, em vez de trocar de leitura, querer que o autor perca o emprego), mesmo que se possa filtrá-los. Mas, ao contrário dos folhetins e pasquins de antanho, a vantagem é justamente criar um ambiente de discussão nesse deserto de idéias que é a grande mídia.

RODAPÉ

Quem sabia que o espírito ensaístico e as saladas culturais brotaram juntos era George Orwell, um prosador como poucos no jornalismo. São para comemorar os relançamentos de seu Lutando na Espanha (Globo), que contém Homenagem à Catalunha, seu vivíssimo livro-reportagem de 1938 sobre a Guerra Civil Espanhola, e de Na Pior em Paris e Londres (Companhia das Letras), relato inesquecível de 1933 sobre sua convivência com mendigos na depressão.

Outro da estirpe era Otto Maria Carpeaux, novamente a estrela dos volumes As Obras-primas Que Poucos Leram, organizados por Heloisa Seixas (Record), dedicados a poesia e teatro (vol. 3) e não-ficção (vol. 4). Escrevendo sobre Dante, Büchner, Villon ou Nietzsche, Carpeaux é o explicador perfeito.

Trabalho de coleta admirável é também o de José Domingos de Brito, que acaba de publicar a segunda edição de Por Que Escrevo? e a primeira de Como Escrevo? (editora Novera), reuniões de frases célebres e depoimentos sobre os temas.

DE LA MUSIQUE (1)

Se lançado em outro país por músicos locais, o CD de João Donato e Paulo Moura, Dois Panos para Manga (da ótima gravadora Biscoito Fino, que dá provas do grande momento que a música instrumental brasileira vive no momento), seria celebrado à exaustão. O repertório tem clássicos brasileiros como Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro), americanos como Swanee (George e Ira Gershwin) e That Old Black Magic (Harold Arlen e Johnny Mercer) e faixas da própria dupla, como Pixinguinha no Arpoador, para citar as interpretações de que mais gostei, por sua dose de inventividade e frescor. Donato e Moura contrariam a moda corrente de gravar "standards" com harmonia convencional ou de tratar a bossa nova como música ambiente de novela.

DE LA MUSIQUE (2)

Fiquei impressionado ao tomar conhecimento dos projetos de óperas, operetas ou récitas propostos para o Theatro São Pedro abrigar em 2007. A variedade é imensa: vai de obras menos conhecidas de Orff e Rossini a Gilbert e Sullivan ou Benjamin Britten, e até se sente falta de outras idéias convencionais como Lucia di Lamermoor. Existe, portanto, uma demanda reprimida por encenações operísticas no Brasil. Por sinal, o teatro começa na próxima semana - quando apresenta O Elixir do Amor - um programa de "grandes vozes", com "master classes" de veteranos como Evgeny Nesterenko e Niza de Castro Tank, que são o embrião de um breve estúdio de ópera, dedicado a formar cantores líricos.

UMA LÁGRIMA

Para Raul Cortez, morto aos 73 na última terça. Um bom símbolo de sua carreira é o fato de ter trabalhado com Antunes Filho e com Zé Celso, considerados "antípodas" estéticos no teatro brasileiro. Fez muitas novelas sem cair como tantos outros - Tony Ramos, Antonio Fagundes - na atuação em piloto automático, ou no representar a si mesmo. E no cinema deixou muitos personagens marcantes, o último dos quais o pai de Lavoura Arcaica. Luiz Fernando Carvalho conta que Raul Cortez quase abandonou a filmagem, devido às exigências do texto de Raduan Nassar, mas, depois de ler uma carta do diretor, decidiu continuar e no dia seguinte realizou aquela cena antológica do sermão ao filho. Ele tinha uma combinação única de elegância com malícia, e se buscou uma carreira variada não foi para currículo, mas para aprendizado. Tanto é que foi melhorando com a idade, enquanto seus contemporâneos pioravam.

POR QUE NÃO ME UFANO

Importou-se o debate sobre Israel com a mesma polarização que o asfixia. O Hezbollah, apoiado por Síria e Irã, representa o que há de pior no radicalismo islâmico. Mas a reação de Israel não mede conseqüências; dizem que o objetivo é desmantelar o arsenal do grupo no sul do Líbano, mas não consigo entender como isso explica a destruição de tantos prédios e vidas civis em Beirute. Os EUA falam em intervir pela paz; no entanto, quase ninguém se dá ao trabalho de notar que a escalada de agressões deriva da invasão ao Iraque, que, em vez de espalhar democracia pelo Oriente Médio, dá força a líderes medievais como Ahmadinejad, para quem Israel nem sequer deveria existir.

Aforismos sem juízo

O caminho do meio é o da vertigem, não o da virtude. Só nos extremos o conformismo vence.