sexta-feira, junho 23, 2006

Merval Pereira - Cristianização

O Globo
23/6/2006

A utilização do termo “cristianização” em relação ao comportamento
que o PSDB está tendo com a candidatura do ex-governador Geraldo
Alckmin à Presidência tem suscitado boas discussões teóricas.
“Cristianização” pode ser usado para qualquer candidatura que é
abandonada por seu partido, ou apenas para as que, como a de
Cristiano Machado pelo PSD nas eleições presidenciais de 1950, são
abandonadas para que o partido apóie outra com mais chance de sair
vencedora?

Há quem ache que abandonar seu candidato para perder a eleição não
deve ser classificado como “cristianização”.

O termo, segundo o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da
Fundação Getúlio Vargas, define a “traição de um partido político a
seu candidato a cargo eletivo”. Passou a ser usado a partir de 1951,
depois que o PSD, tendo indicado Cristiano Machado candidato à
Presidência, apoiou na verdade a candidatura de Getúlio Vargas. A
historiadora Alzira Alves de Abreu, uma das organizadoras do
Dicionário e autora do verbete “cristianização”, acha que ainda não
está caracterizada essa atitude do PSDB em relação a Alckmin.

Na verdade, ela diz, o partido não parece muito entusiasmado com a
candidatura Alckmin, mas não há nenhum sinal de que mesmo os setores
mais avessos a ela, como poderiam ser os governadores Aécio Neves, de
Minas, candidato potencial a 2010, e o ex-prefeito José Serra, de São
Paulo, preterido como candidato este ano e também aspirante à
sucessão nas próximas eleições, se bandearão para apoiar Lula.

Às vezes se pode chegar a esse conceito por caminhos tortos, diz
Alzira Alves de Abreu. “O partido fica deixando de lado seu
candidato, meio sem entusiasmo, mas acho que o PSDB não está
‘cristianizando’ o Alckmin. Mesmo o Aécio, que pode ter mais
interesse em 2010, ou o Serra, eles não vão apoiar Lula. Vamos ver
mais adiante, mas acho que não está acontecendo”.

No caso de uma interpretação restrita do termo “cristianização”, o
PMDB teria “cristianizado” Serra em 2002, pois, mesmo tendo apoiado
oficialmente sua candidatura, indicando inclusive a vice Rita Camata,
grande parte de seus líderes apoiou Lula.

Para citar apenas alguns mais notórios, o ex-presidente José Sarney
apoiou Lula, em represália ao que considerou uma manobra de Serra
para desmoralizar sua filha, a senadora Roseana Sarney, no episódio
da pilha de dinheiro vivo encontrada num escritório de seu marido,
Jorge Murad. Também Roberto Requião, candidato ao governo do Paraná,
apoiou ostensivamente Lula.

O mesmo aconteceu com o PFL, tradicional aliado do PSDB, em que
líderes de expressão como Antonio Carlos Magalhães apoiaram Lula. Mas
nesse caso não há como dizer que os liberais “cristianizaram” Serra,
já que o partido não apoiou formalmente sua candidatura. Pelo mesmo
critério, Alckmin não estaria sendo “cristianizado” hoje, pois
ninguém do PSDB e do PFL está apoiando Lula, nem mesmo indiretamente.

Fernando Lattman-Weltman, também historiador do Centro de Pesquisas e
Documentação (CPDOC), da FGV, e co-autor do Dicionário, admite,
porém, uma interpretação mais abrangente do termo “cristianização”.
Weltman diz que “como se trata de neologismo criado a partir da
experiência política coletiva das gerações passadas — com um forte
acento irônico — e não, portanto, de conceito preciso de qualquer
manual de ciência política, o uso do termo é passível de sofrer as
mais diversas — e legítimas — manipulações retóricas”.

Buscando ser fiel ao “espírito da coisa”, ele crê que o que importa é
se “a ação ou inação dos correligionários do candidato tucano Geraldo
Alckmin terão ou não impacto previsível e diferenciado sobre o
resultado eleitoral, e provável vitória do adversário”. Abandonar
Alckmin teria impacto na definição da eleição (a favor de Lula, é
claro)?, pergunta ele.

Ele ressalta que, nas eleições de 1950, Vargas ganhou apertado (não
havia segundo turno), com cerca de 48% dos votos, contra 29% do
segundo colocado, o udenista Eduardo Gomes. Cristiano Machado acabou
em terceiro, com 21%. A UDN contestou a vitória de Vargas, alegando
que a Constituição exigia maioria absoluta, que ele não obteve. Mas o
TSE o proclamou presidente-eleito.

Outro detalhe importante, segundo Weltman, é que o desempenho geral
do PSD foi muito melhor que o de seu candidato à Presidência em
vários estados, inclusive na Minas Gerais de Cristiano Machado. Por
esse critério, Serra teria sido “cristianizado” por Aécio em 2002,
pois o então candidato a governador de Minas teve vitória
consagradora no primeiro turno, com 57,7% dos votos, semelhante à
votação de Lula em Minas, que obteve 53% dos votos, enquanto Serra
ficou com apenas 22,9% dos votos.

Também hoje, os índices de aprovação de Aécio em Minas, próximos de
70%, estão longe de serem parecidos com os de Alckmim, o que
indicaria o pouco empenho das máquinas partidárias em favor dele.

Para Fernando Lattman-Weltman, o sucesso da expressão seguramente
está ligado a estes dois fatores: 1) à disparidade de desempenho do
partido de Cristiano, o que demonstra a diferença de empenho de seus
correligionários; 2) à ressaca amarga dos antigetulistas, por um
resultado tão apertado, que significou, para eles, um desastre político.

Ele acha que o fenômeno, “ou coisa parecida”, certamente ocorreu
outras vezes — e não só em 2002. Na sua interpretação, “ao menos
também em 1989, na eleição do Collor, se poderia dizer que tanto o
PFL cristianizou Aureliano Chaves, quanto o PMDB, teria feito o mesmo
com Ulysses Guimarães, em prol do ex-caçador de marajás”.

Para Weltman, dadas, porém, “as lamentáveis similitudes simbólicas —
entre Lula e Vargas, de um lado, e setores de suas oposições, por
outro — que, infelizmente, parecem estar rondando a eleição deste
ano, não é mero acaso a ressurreição da expressão — e do espírito —
da ‘cristianização’”.