sábado, maio 27, 2006

Uma eleição sem espaço para o populismo

veja

O México vota.
E já descartou o populismo

O próximo presidente mexicano, mesmo
que queira, não será cópia de Chávez.
A economia aberta e as instituições blindaram
o país contra as excentricidades políticas


Diogo Schelp, da Cidade do México

 

Fotos Daniel Aguilar/Reuters e Eduardo Verdugo/AP
López Obrador (acima) garante que pretende ser um novo Lula. Calderón, seu adversário, diz que ele será um novo Chávez

O temor de que a maré populista na América Latina chegue ao México é o tema central da campanha para as eleições presidenciais de 2 de julho naquele país. No foco dessa preocupação está Andrés Manuel López Obrador, candidato do Partido da Revolução Democrática, o PRD. Ex-prefeito da Cidade do México, ele é dono de um currículo que o coloca, no espectro político, nas proximidades do venezuelano Hugo Chávez. Depois de liderar as pesquisas de intenção de voto durante seis meses, López Obrador foi alcançado nas últimas semanas por Felipe Calderón, candidato do partido do presidente Vicente Fox. A estratégia bem-sucedida do governista baseia-se em convencer o eleitorado de que, se eleito, seu adversário repetiria no país as políticas populistas de Hugo Chávez – em resumo, sangraria os recursos do Estado para sustentar programas sociais clientelistas, tentaria mexer na Constituição para se perpetuar no poder e, para piorar, iria armar encrencas com os Estados Unidos. López Obrador contra-ataca com a promessa de que não pretende ser um sucedâneo do histriônico de Caracas, e, sim, um pragmático ao estilo de Luiz Inácio Lula da Silva.

A moderação do discurso de López Obrador – que os mexicanos tratam normalmente por Andrés Manuel ou por suas iniciais, Amlo – diz muito sobre o México atual. O país que Fox entregará a seu sucessor parece ter ultrapassado, a exemplo do Brasil, uma linha de racionalidade que impede governantes de se lançar em aventuras políticas e econômicas. Desde 1994, quando entrou em vigor o Nafta, um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos, o México vive o período de menor turbulência social e econômica de sua história. Nos cinco anos que se seguiram à entrada em vigor do tratado, a economia do país cresceu em média 5%. De lá para cá, o ritmo tornou-se mais lento. As taxas de crescimento são, em décadas, as mais estáveis de uma economia que distribui mais igualitariamente as riquezas. No processo de entrada no mundo moderno, o México também se livrou do governo do Partido Revolucionário Institucional, o PRI, cuja ditadura disfarçada por eleições de cartas marcadas se prolongou por sete décadas. Só uns poucos dinossauros querem voltar aos monopólios estatais e à economia fechada dos tempos do PRI. São elementos que ajudam a blindar o país contra governos aventureiros.

"O populismo surge como conseqüência de uma crise de legitimidade das instituições políticas", disse a VEJA o uruguaio Francisco Panizza, professor de política latino-americana da London School of Economics, na Inglaterra. Crises como essas acontecem quando uma grande parcela da população não se sente representada pelos partidos políticos e quando o Estado, fraco e corrupto, não consegue resolver demandas sociais acumuladas. Os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia, assumiram o poder nessas condições. Países com partidos políticos fortes, Estado razoavelmente eficiente e políticas socioeconômicas voltadas para o crescimento e para o bem-estar da população são menos propensos aos surtos demagógicos. Nessa categoria se encaixam, em graus diferentes, Brasil, Chile, México, Uruguai e Colômbia. Isso não significa que não possam surgir políticos populistas nesses países. Mas a margem de ação deles para cometer desatinos fica muito reduzida. Nesse sentido, o México dispõe hoje de um arsenal de vacinas para prevenir as extravagâncias populistas:

É DIFÍCIL MUDAR A CONSTITUIÇÃO – Se quisesse mudar as regras para se perpetuar no poder, como fez Chávez na Venezuela, o próximo presidente do México teria de conseguir o apoio dos três partidos fortes do país – o PAN, de centro-direita, o PRD, de esquerda, e o PRI, um saco de gatos que lembra o PMDB. Cada um tem em média um terço do Congresso, distribuição que deverá se manter nas eleições de julho. Para completar, mudanças na Constituição precisam da aprovação de dois terços dos governadores estaduais.

BANCO CENTRAL INDEPENDENTE – Desde 1993, o Banco de México ganhou novas regras, incluindo uma diretoria que não pode ser demitida pelo presidente. A instituição vem cumprindo sua meta: a inflação está em pouco mais de 3% ao ano e a taxa de juros é a metade da brasileira. Um governante populista teria pouco espaço de manobra nessa área.

ECONOMIA GLOBALIZADA – O México tem uma das economias mais escancaradas do mundo. Em média, 95% de suas importações e exportações são fruto de algum acordo de livre-comércio. O México tem uma dezena deles, abrangendo 42 países, entre os quais os da União Européia, os Estados Unidos e o Japão. O governo mexicano não pode tomar a decisão de elevar tarifas ou fechar a economia sem desrespeitar esses tratados, sob o risco de jogar o país no caos econômico.

TENSÃO ÉTNICA SOB CONTROLE – Uma das características do novo populismo latino-americano é buscar apoio na população indígena. No México, os índios representam uma minoria de 12%. O tristemente notório subcomandante Marcos, o mascarado que liderou o levante zapatista no estado de Chiapas, em 1994, tornou-se hoje uma figura folclórica, sem expressão política.

O México tem consciência de que o estilo "pai do povo" está no DNA político da população. Como um organismo vivo, o país não pode permitir uma queda no sistema imunológico, sob pena de ver surgir uma reencarnação política de ogros como o lendário general Santa Anna ou do bandoleiro Pancho Villa. Em 22 anos de vida política ativa, Antonio López de Santa Anna foi presidente ou ditador do México onze vezes. Isso mesmo: entrava e saía do posto de mandatário como quem troca de camisa. Santa Anna dominou a política mexicana por décadas depois que o país se tornou independente da Espanha, em 1821. Após um de seus golpes de Estado, em 1853, Santa Anna baixou um decreto dando a si próprio o título de "sua alteza sereníssima". Seu programa de governo pode ser resumido em uma de suas frases lendárias: "Enquanto tivermos um Congresso, não haverá progresso". Santa Anna, um tradicional vilão dos filmes de Hollywood por ter massacrado prisioneiros indefesos durante a guerra pelo Texas, é a imagem mais bem-acabada da tradição personalista e autoritária e da instabilidade política do passado do México.

 

Jakub Mosur
Mexicano cruza a fronteira para procurar trabalho nos Estados Unidos, perto de San Diego: 400 000 emigrantes anuais

Duas décadas depois de "sua alteza sereníssima", outro soldado, Porfírio Diaz, assumiu o poder. Este governou por mais de vinte anos e deixou de herança o Estado centralizador que o PRI iria transformar em uma ação entre cupinchas. É dele uma frase que ainda hoje divide apaixonadamente o país: "Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos". A proximidade com os Estados Unidos, que tomou metade do território original do México, foi vista como desgraça. Hoje, ao contrário, o fato de o país estar grudado no maior mercado consumidor do mundo é encarado como vantagem matadora. Os Estados Unidos compram 80% das exportações mexicanas. Para aproveitarem a mão-de-obra mais barata, muitas indústrias americanas se instalaram no lado mexicano da fronteira – são as chamadas maquiadoras, que montam produtos eletrônicos ou automotivos –, criando empregos e injetando dinheiro na região. O abraço final nessa relação simbiótica é dado pelos emigrantes. Um em cada dez mexicanos vive nos Estados Unidos. López Obrador, oriundo da ala esquerda do PRI, tem um inegável traço populista, mas não abre a boca para falar mal dos Estados Unidos. Como prefeito da capital, aumentou a dívida municipal com obras faraônicas e com a distribuição de dinheiro público aos idosos. O benefício de 60 dólares é pago aos velhinhos da cidade, sem nenhuma precondição, exceto a idade avançada. Filho de pequenos comerciantes do estado de Tabasco, um dos mais pobres do México, Obrador tem uma maneira muito simples de falar e cultiva a fama de trabalhador incansável – quando prefeito, diariamente concedia uma entrevista coletiva à imprensa às 6 da manhã.

Um indício de que as instituições mexicanas são suficientemente fortes para barrar extravagâncias populistas foi a reação tranqüila do mercado financeiro ao longo período de liderança de Obrador nas pesquisas. O risco-país, índice que mede a confiabilidade das economias emergentes, nunca esteve tão baixo. Para comparar, durante a campanha de 2002, quando Lula aparecia como o preferido nas pesquisas eleitorais, o risco Brasil subiu e o dólar disparou. Uma das explicações para essa diferença de tratamento é que a economia mundial vive, hoje, tempos de bonança. "Além de a conjuntura econômica ser diferente, o fenômeno Lula nos beneficiou", diz Rogélio Ramírez de la O, coordenador econômico da campanha de Obrador. "Os investidores viram que um político com devoção a causas sociais pode muito bem fazer um governo pragmático." Em seu escritório com porta de saloon de filme de caubói, em um bairro nobre da Cidade do México, Ramírez de la O, cotado para ser ministro da Fazenda de Obrador, prepara um projeto econômico que prevê responsabilidade no uso do dinheiro público e manutenção das regras de livre mercado.

Divulgação
O general Santa Anna: onze vezes presidente


Brasil, Chile, Uruguai, Colômbia e México formam um eixo de bom senso que se contrapõe ao avanço do populismo, da demagogia e da ideologização representados por Hugo Chávez e suas marionetes na América Latina. É uma boa notícia que o candidato da esquerda mexicana declare sua adesão aos princípios universalmente aceitos de governabilidade e de condução civilizada da vida econômica. É claro que isso não é suficiente para aumentar seu eleitorado além de certo patamar – afinal, o eleitor mexicano pode ter tudo isso e ainda avanços maiores se simplesmente votar em Calderón. "Preocupa-me a possibilidade de Obrador vencer porque ele representa a volta a um modelo que não funciona, baseado no aumento dos investimentos estatais em infra-estrutura", diz Gastón Azcárraga, dono da segunda maior companhia aérea mexicana e de um grupo hoteleiro que inclui a rede Caesar Park, no Brasil. Roberto Albarrán, dono da indústria de sucos Del Valle, que também tem fábricas no Brasil, vê como maior risco de um possível governo Obrador sua recusa em fazer reformas estruturais nas áreas energética, fiscal e trabalhista.

O México é o sexto maior produtor mundial de petróleo. A estatal Pemex tem o monopólio de toda a cadeia petroleira, desde a prospecção até a venda ao consumidor final – não existem postos de gasolina de outra bandeira no país. A ineficiência da estatal e a falta de investimentos estão fazendo com que a quantidade de reservas conhecidas no país esteja em declínio. Estima-se que, se não forem descobertos novos campos petrolíferos, as jazidas estarão esgotadas dentro de dez anos. Calderón propõe permitir a entrada de empresas estrangeiras para aumentar a pesquisa, sem privatizar o setor. O México precisa de uma reforma fiscal para ajudar a resolver esse problema. Como a receita tributária é pequena, o Estado depende da renda do petróleo para se sustentar. Se arrecadasse de outras fontes, sobraria dinheiro para reinvestir na exploração do petróleo.

 

Daniel Aguilar/Reuters

Marcos: virou folclore

Ao assinar o Nafta, o México optou por um modelo exportador semelhante ao do Chile: apoiado em acordos de livre-comércio com o maior número possível de países. Mas não alcançou o desempenho chileno, que cresceu a uma média anual de 6% nos últimos dez anos. A razão é que, por falta de reformas estruturais, a abertura mexicana foi incompleta. Em alguns setores, como o da eletricidade, os monopólios estatais foram mantidos. Em outros, foram substituídos por oligopólios privados. O exemplo mais citado é o das telecomunicações. Não apenas o serviço é ruim como uma ligação internacional custa quatro vezes mais caro no México que nos Estados Unidos. Em seus cinco anos e meio no poder, Fox não conseguiu aprovar nenhuma reforma importante. A maior contribuição do presidente foi cimentar a estabilidade da economia, com inflação controlada, equilíbrio fiscal e redução da dívida externa.

Nesse período também diminuiu o número de pobres, de 24 milhões em 2000 para 18 milhões em 2004. O principal fator de redução da pobreza não foi nenhuma ação do governo, mas a emigração. Estima-se que 400.000 mexicanos cruzem a fronteira americana todos os anos. Em conseqüência, há uma redução no número daqueles que procuram emprego no México. Por outro lado, os emigrantes enviam aos familiares mais de 18 bilhões de dólares por ano. É mais que o total de investimentos estrangeiros diretos. "Nos Estados Unidos, ganha-se em uma hora mais do que em um dia inteiro de trabalho no México", diz o comerciário Geraldo Prado, 42 anos, morador da Cidade do México. Nos últimos dez anos, Geraldo passou três temporadas nos Estados Unidos, para trabalhar na montagem de casas pré-fabricadas. As propostas de López Obrador e de Calderón para resolver essa intensa exportação de mão-de-obra? Bem, nisso eles concordam: a exportação de miseráveis para os Estados Unidos será ainda por bom tempo uma das mais eficientes políticas sociais do país.

 

 

 

 

A vitalidade do dramalhão

Esmas/AFP
Alejandra Barros, atriz de Mariana da Noite: exagero cativa o público


Na pauta de exportação, o produto que mais bem representa a alma mexicana são as novelas. A rede Televisa, que concentra 70% do mercado televisivo do México, é a maior produtora e exportadora de novelas do planeta, com vendas estimadas em 260 milhões de dólares por ano. Cento e vinte países já transmitiram seus dramalhões. A Rede Globo fatura menos de um terço desse valor com a exportação de novelas, mas a concorrência é encarada com seriedade pelos mexicanos. "Nos últimos quatro anos, a Globo entrou no mercado internacional com uma qualidade visual tão alta que tivemos de rever nosso padrão de produção para não perder espaço", diz Roberto Gomez, diretor adjunto da vice-presidência de programação da Televisa.

Roberto Gomez é filho de Roberto Bolaños. Para quem não ligou o nome ao personagem, trata-se do criador e protagonista de Chaves e Chapolin, séries de humor infantil de grande sucesso no México e no Brasil. Chapolin foi, por sinal, o produto pioneiro nas exportações da TV mexicana. "Em Chaves, meu pai soube juntar três elementos de sucesso. São eles o roteiro extraordinário com valores universais e atemporais, atores perfeitos para seus papéis e direção cênica eficiente", diz Gomez. O SBT retransmite no Brasil os episódios de Chaves e Chapolin – à exaustão – e cinco novelas da Televisa.

"Nossos melodramas fazem sucesso justamente porque as qualidades e os defeitos dos personagens são exagerados", disse a VEJA Alejandra Barros, protagonista de Mariana da Noite, transmitida pelo SBT. "Por isso é mais fácil para pessoas de qualquer país se identificar com eles." A atriz mexicana de 34 anos estudou teatro e interpretação para TV e cinema em respeitadas escolas americanas, como a Actors Studio. Sua especialidade, no entanto, é o melodrama. A fórmula da Televisa é a mesma há cinqüenta anos: um enredo simples que se resume a uma luta do bem contra o mal – com o bem e o amor triunfando no fim. Nas poucas vezes em que se tentou fazer novelas com um estilo mais naturalista, à brasileira, o público mexicano estranhou.

 

O México que Fox deixa

 

José Luis Magana/AFP

A seis meses do fim do mandato e sem direito à reeleição, o presidente Vicente Fox está percorrendo o México para participar da entrega de casas populares e da inauguração de obras públicas. Seu objetivo é mostrar que fez mais que simplesmente garantir a estabilidade econômica do país. Ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA no avião presidencial, em uma dessas viagens.  

QUE PAÍS O SENHOR ACREDITA ESTAR DEIXANDO PARA SEU SUCESSOR?
Conseguimos transitar de um regime autoritário para uma democracia sem violência ou crises econômicas. Fizemos um governo de transparência, prestação de contas públicas e respeito à liberdade de imprensa. Estou deixando o país com uma economia forte, que cresce sem inflação e gerando empregos. Por fim, houve uma importante redução da pobreza.  

POR QUE O NÚMERO DE MEXICANOS QUE EMIGRAM PARA OS ESTADOS UNIDOS AUMENTOU SE A POBREZA DIMINUIU?
Os atrasos continuam enormes. A pobreza subsiste. Ainda temos carência de oportunidades e de empregos no México. A parcela da população que está em idade de trabalhar, estudar ou comprar uma casa é muito grande. O país não tem capacidade de atender todos esses mexicanos.  

O QUE FALTOU PARA O MÉXICO ATINGIR UM RITMO MAIS ACELERADO DE CRESCIMENTO ECONÔMICO?
Faltou fazer as reformas estruturais. Somos um governo com minoria no Congresso, e a oposição resistiu a aprovar essas reformas. O próximo presidente também terá de governar com uma minoria, mas acredito que vai ter menos dificuldade para conseguir consenso. Seis anos de experiência nos ensinaram que temos de colocar os interesses da nação à frente de interesses partidários ou pessoais.  

O SENHOR VÊ SEMELHANÇAS ENTRE O CANDIDATO À PRESIDÊNCIA LOPEZ OBRADOR E O PRESIDENTE VENEZUELANO HUGO CHÁVEZ?
A lei não me permite opinar sobre as candidaturas. Está claro, no entanto, que o México não pode uma vez mais desviar o rumo e enveredar pelo populismo ou pela demagogia. A desordem fiscal, financeira e no Orçamento já foi a causa de grandes desgraças neste país e de perda de patrimônio para a maioria dos mexicanos.

COMO O SENHOR VÊ O AVANÇO DO POPULISMO NA AMÉRICA LATINA?
Prevalece na região a lei do pêndulo: os países ora vão para a esquerda, ora para a direita. Isso provoca inconsistência no processo de desenvolvimento. A verdade é que só há um modelo que funciona e dá resultados: o de livre mercado com responsabilidade social. Devido ao sucesso do Nafta, sou um grande defensor da Alca. Por isso, também, solicitei a entrada do México no Mercosul. O Uruguai está totalmente de acordo. Espero que o Brasil e a Argentina nos aceitem em breve.