sábado, maio 27, 2006

Lula se torna o guardião da política econômica

VEJA
Foi só um tranco e o

trem fica nos trilhos

A turbulência internacional transforma
Lula em guardião da estabilidade

 

Foto Ricardo Stuckert/PR
Lula, na Ferrovia Norte–Sul: maquinista da estabilidade

"O câmbio continuará flutuante. Nós temos reservas, temos tranqüilidade na economia. Quem chegou até agora numa situação de tranqüilidade não vai jogar fora a conquista que tivemos."
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, na terça-feira passada, assumindo para si a missão de tranqüilizar os investidores

Há 100 anos, no dia 18 de abril de 1906, um dos maiores terremotos da história dizimou São Francisco, na Costa Oeste dos Estados Unidos. A cidade fica no caminho da falha geológica de San Andreas e vive sob o perigo latente de uma nova catástrofe. Essa falha leva os moradores da cidade a se perguntar quando virá o "Big One". Algo semelhante ocorre no mundo econômico, como lembrou o colunista Celso Ming, do jornal O Estado de S. Paulo. O governo americano gasta mais do que arrecada, e o país, como um todo, importa muito mais do que exporta – desequilíbrios apelidados de déficits gêmeos. Além disso, bolhas de valorização no preço de imóveis e de ações se espalham por países ao redor do mundo. Algum dia elas deverão desinflar, ou, na hipótese catastrófica, estourar. Investidores não sabem por quanto tempo esses desequilíbrios permanecerão no cenário. Por isso, eles se assustam diante de qualquer notícia negativa, pois temem o "Big One" da economia, o grande terremoto financeiro. E, num mecanismo psíquico descrito pelo economista Benjamin Graham, temor gera turbulência porque mercados são neuróticos e seus estados de humor oscilam entre o otimismo incrível e a depressão avassaladora.

Alguma coisa mais próxima da depressão ocorreu nas últimas duas semanas, quando a ameaça de um repique inflacionário nos Estados Unidos e a perspectiva de juros mais elevados nos países ricos levaram a uma debandada de bilhões de dólares aplicados em mercados emergentes e outros investimentos com risco mais elevado. Bolsas de todo o mundo tiveram fortes perdas. No Brasil, onde a turbulência foi amplificada por declarações contraditórias sobre câmbio vindas do Ministério da Fazenda, não foi diferente. Coube ao presidente Lula sair em defesa do modelo econômico e da estabilidade financeira. "O câmbio continuará flutuante. Quem chegou até agora numa situação de tranqüilidade não vai jogar fora a conquista que tivemos", disse o presidente. A declaração de Lula é oportuna. Principalmente porque o presidente dá sinais de que se tornou, com a saída de Antonio Palocci do Ministério da Fazenda, o guardião da política econômica que manteve seu governo de pé até aqui. Claro que a retórica de Lula de nada adiantaria se o país não tivesse bons fundamentos econômicos a apresentar.

 

Valter Campana/ABR
Mantega na posse de Júlio Gomes de Almeida: agrado ao empresariado

O Brasil possui sobra de recursos externos. Há superávit na conta de transações com o exterior e o saldo comercial deverá ficar em torno de 40 bilhões de dólares neste ano. A inflação permanece sob controle. A solidez desses fundamentos afasta o risco de uma crise semelhante às ocorridas em 1998 e 2002. A turbulência tem tudo para ser passageira. Como as taxas de juros estão em trajetória de alta nos Estados Unidos e na Europa, as carteiras de investimentos internacionais passam por um processo de ajuste – os investidores reduziram suas apostas em aplicações de maior risco, como ações de países emergentes, e deslocaram seus recursos para papéis mais seguros, como títulos do Tesouro americano. Quando os juros dos países ricos pararem de subir, o que deve ocorrer em breve, os mercados globais provavelmente chegarão a um novo ponto de equilíbrio. "Essa turbulência no Brasil vai se acomodar. As condições hoje são muito melhores", disse o economista José Antonio Gragnani, que deixou recentemente o cargo de secretário adjunto do Tesouro Nacional.

Nos últimos três anos, a economia mundial registrou o mais vigoroso período de crescimento desde o início da década de 70. O país soube tirar proveito, reduzindo o endividamento e ampliando reservas. Por isso, ninguém imagina que o Brasil enfrentará uma turbulência mais severa nem que a cotação do dólar fuja ao controle – ao menos enquanto a política econômica for conduzida com pragmatismo e seriedade. Nem mesmo os erros práticos e os desacertos verbais de Guido Mantega, ministro da Fazenda, afetaram a rota da economia. Mantega já falou em aumento nos gastos públicos, defendeu mudanças no regime cambial e levou para a Fazenda um economista com visão antagônica à da política econômica chancelada por Lula. Na segunda-feira, o ministro da Fazenda nomeou o economista Júlio Gomes de Almeida para o cargo de secretário de Política Econômica. Ex-diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ligado à Unicamp, Gomes de Almeida sempre defendeu maior intervenção estatal na economia e uma ação do governo para elevar a cotação do dólar. "O Mantega não é louco a ponto de rasgar dinheiro, mas tem feito pequenas besteiras na gestão econômica", diz um ex-presidente do BC.

Paulo Liebert/AE
Meirelles: o BC e o Ministério da Fazenda em rota de colisão


Na opinião de Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro, até o momento não existem evidências de guinadas traumáticas na condução da economia. Levy, no entanto, teme a adoção dos artificialismos propostos por setores exportadores para inflar o dólar. O que mais o preocupa é a possibilidade de revogação da medida provisória que eliminou a cobrança de imposto de renda de investidores estrangeiros que comprem títulos públicos no Brasil. A idéia foi estimular a demanda por papéis da dívida pública, ampliando os prazos e reduzindo os juros de uma forma saudável. Funcionou até agora.

As coisas correm bem e vão continuar assim desde que prevaleça o bom senso demonstrado pelo presidente Lula. Sua defesa do atual modelo foi enfática ao longo da semana passada. "Nós temos reservas, temos tranqüilidade na economia", afirmou. "Uns querem câmbio a 2,30, outros a 2,50, como se pudesse, num passe de mágica, o presidente do Banco Central ficar dizendo como vai ser o dólar. Na verdade, é o mercado que vai regular." A economia brasileira, que no passado já foi comparada ao Titanic, agora só afunda se alguém na cabine de comando procurar um iceberg.