terça-feira, maio 30, 2006

Chega de encenação PAULO SÉRGIO PINHEIRO


Chega de encenação

Artigob -
Folha de S. Paulo
30/5/2006

O TERROR do crime organizado sob o qual vivem faz tempo todas as comunidades populares em São Paulo se abateu sobre o resto da cidade. E escancarou o mau funcionamento das instituições do Estado democrático. Continuamos com o entulho da estrutura da segurança pública da ditadura militar, com a divisão no interior das polícias e a militarização do policiamento ostensivo. O Congresso Nacional há 17 anos não tem vontade ou não encontra tempo para reformar as polícias.

Devemos exigir repressão e investigação. Mas, na democracia, ao contrário da ditadura militar, tudo deve ser feito às claras

A questão da segurança pública é complexa demais para ser lidada de forma amadora por polícias civis ineficientes e uma corporação militarizada, com todos os tiques do regime autoritário. Adorável a desculpa do comandante-geral da PM para a inação diante das ameaças dos criminosos na véspera: "Não fizemos o alerta via rádio antes para evitar pânico e tumulto entre os policiais". Isto é, esperou-se os ataques contra as vidas de civis e de policiais para dar o alerta geral! E o governo foi incapaz de articular toda a força policial sob um comando único de emergência. Há toneladas de estudos com dados oficiais que demonstram que a maior parte dos policiais militares são abatidos durante o "bico" (serviço extra), e não em serviço, e que maioria das mortes pela polícia em São Paulo, alegadamente "resistência seguida de morte", são execuções sumárias, com tiros nas costas ou na cabeça. Pois foi exatamente o que ocorreu depois dos ataques criminosos contra a população e policiais: alguns PMs desandaram a matar a torto e a direito. E, piada maior, o governo nada divulgou, para "preservar as famílias" (melhor seria se não tivessem executado seus familiares) ou não "comprometer investigações". E, como na ditadura, a Secretaria de Segurança Pública recolheu os laudos de necropsia do IML. Pela trapalhada da secretaria e da PM reina a confusão geral: dos supostos 123 mortos pela polícia, alegadamente 79 seriam ligados ao PCC, dos quais 49 teriam ficha criminal (logo, abatíveis). Desses 79, 62 teriam morrido após ataques do PCC (quando, como, onde?), e 17, em "ações preventivas" (depois dos ataques das quadrilhas?). Parece que algum médium invocou os serviços do dr. Shibata, aquele que dava laudos maquiados na ditadura. A política de segurança de São Paulo, inerme diante do crime organizado, descolada da sociedade, fundada num discurso triunfalista e na força (entre as democracias no mundo, São Paulo é a cidade onde a polícia mais mata civis, um por dia, o que não está mais na moda nas melhores polícias), precisa mudar. Essa pirotecnia policial é impotente diante da quadrilhas e arriscada para a vida dos policiais: debelar o crime organizado requer inteligência, a da informação e a do cérebro, infiltração nas quadrilhas e paciência, e não a força burra das balas. Talvez falhamos em lidar com as questões da segurança apoiando o partido político, o líder político, o governo que permitisse dar forma ao que pensava a sociedade civil. Avançamos, mas muito pouco, e a situação continua desoladora. Faz poucos dias, numa reunião em Grenoble, na França (abalada por crises semelhantes à de São Paulo), se discutia se não seria a hora de uma "democracia de interação" entre sociedade civil e sociedade política, entre crítica social e projetos de reformas. Promover reuniões em que operadores das instituições, ONGs e universitários pudessem trabalhar juntos. Algo que permitisse passar de um discurso público de protesto, impotente, ou de respostas estereotipadas para uma abordagem mais fundada na transformação efetiva das coisas. Seja como for, está na hora de os parlamentares fazerem a reforma das polícias e varrer sua estrutura gagá. O Judiciário precisa ter linha dura e prioridade na luta contra o crime organizado e a corrupção policial, e, no sistema penitenciário, acompanhar a execução das penas (a maioria dos juízes tem horror a visitar cadeias). Ao governo federal cabe a liderança das reformas paradas. Não nos imobilizemos sob o terror dos criminosos. Devemos exigir uma repressão eficiente ao crime organizado e uma investigação competente. Chega de encenação para a galera. Na democracia, ao contrário dos cômodos tempos da ditadura militar, tudo deve ser feito às claras.

PAULO SÉRGIO PINHEIRO , 62, é expert independente do secretário-geral da ONU para a violência contra a criança, em Genebra, e pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo FHC).