O Globo |
30/5/2006 |
A grande ironia é que o Lula será reeleito por FH. Sem o Plano Real, combatido pelo Lula e PT até no STF, o governo Lula teria sido o pior desastre de nossa História. E também se não fosse o Palocci segurando a agenda tucana da economia por mais de três anos, contra os ataques de Dirceu e seus quadrilheiros corruptos, estaríamos batendo panela na rua. Aliás, se não fosse a Bolsa Família, derivada do governo de FH, Lula não teria nada a oferecer aos pobres que o elegerão, mesmo à custa de um déficit fiscal crescente, mesmo que a Previdência quebre por causa do salário-mínimo. Lula teve a sorte de ser atacado pelas denúncias de Roberto Jefferson, que o abateram no início, mas que acabaram por livrá-lo dos bolchevistas do Dirceu, que iam destruir seu governo. Graças a seu competente cinismo, sua magistral hipocrisia, Lula conseguiu se libertar dos comunas e voltar a seu populismo personalista. E, ajudado pela economia mundial, que esteve em bonança compradora esses três anos (até quando?), ele certamente vai fingir que é responsável pelos bons índices econômicos. Afinal, o que fez o governo Lula, além de se aproveitar do que ele chamava de "herança maldita"? Absolutamente nada. Os primeiros dois anos foram gastos em reconhecimento do terreno e discussão ideológica. Primeiro, o assembleísmo vacilante dos "Conselhos" que ele nunca ouviu, depois a briga com a "gangue" dos quatro do PT, expulsos. Depois, a organização da quadrilha de corruptos e, em seguida, o triunfo das mentiras, com iniciativas "tapa-buracos" e Lula inaugurando até bica. Ele se revelou um gênio da dissimulação. Por isso, será reeleito. Não tem papo. A miséria política brasileira criou esse fenômeno, fruto da ignorância popular, da lógica patrimonialista e da ausência do Poder Judiciário. Lula é um mutante, um "retrovírus" com um ciclo vital que só se esgotará daqui a quatro anos e meio. E quando acabar, acaba o PT. E na próxima legislatura, os petistas tentarão consolidar empregos e posições estratégicas dentro do governo para não sumirem em 2010. Os 40 mil empregados pelo PT no Estado lutarão como javalis para comer o mais possível por mais quatro anos, mesmo que o país quebre. Tarso Genro e outros estão acenando com possíveis alianças com o PSDB no futuro governo. Provavelmente, é tática para amenizar porradas na campanha. Uma vez eleitos, eles vão entrar com tudo para promover: a reestatização da economia; o inchamento maior ainda da máquina pública; a destruição das Agências Reguladoras, da Lei de Responsabilidade Fiscal, em busca de um getulismo tardio, com uma visão do Estado como centro de tudo, com desprezo pelas reformas, horror pela administração e amor pelos mecanismos de "controle" da sociedade. Lula poderá dar vazão a seu despreparo administrativo, já que não precisará usar da prudência para a reeleição. A esperança da razão é que Lula fugirá das aporrinhações de rupturas e radicalizações de esquerda, conservador fascinado pelo carinho do mundo, da rainha Elizabeth ao Bush. José Serra (consciente ou inconscientemente) fez muito bem em não concorrer, porque ia perder também. Ninguém ganha do Lula, mascote dos desvalidos e símbolo sexual da Academia. A responsabilidade de Serra será enorme: liderar os governadores que, como Aécio em Minas e outros, terão de proteger a democracia desmoralizada e a sensatez nos fundamentos da economia. Os tucanos perderiam porque não têm plataforma. Qual é a plataforma? Tirando a agenda pessoal de FH e a formação competente de Serra, qual é o "pensamento tucano" hoje? Como explicar para a população ignorante que só um "choque de capitalismo" destruiria a máquina podre das oligarquias enquistadas no Estado? Como fazer as privatizações essenciais sem que os velhos comunas falem que é venda do patrimônio? Como explicar um programa de "mudanças possíveis", de uma entent e entre capital e justiça social, de uma social-democracia vacilante e trêmula, contraposto ao marketing utopista e salvacionista de Lula? Ninguém se lembra mais dos "clássicos" com seu ideário de solidez administrativa e social-democracia, ninguém se lembra mais de Montoro, Covas etc. Aécio é bom governante, o Alckmin foi bom administrador, mas falo de "programa". Qual é? A dúvida socrática, o " in medio virtus " escolástico, Rousseau, Locke? Por obra da resistência da direita clientelista, do absurdo paralítico do Judiciário, pelo mais sórdido Parlamento que já tivemos, pela voracidade militante da "porcada magra" se aliando à direita, o velho Brasil está voltando a seu formato tradicional, renascendo como rabo de lagarto. O país tem um movimento regressista natural, uma vocação reacionária além dos homens e dos discursos, automática, quase física. O verdadeiro Brasil é boçal, salvacionista. FH foi um parênteses acidental de reacionalidade , assim como Clinton foi o último democrata, numa América fundamentalista e grossa. Creio que duas coisas podem proteger o país de 2007 em diante: que a economia brasileira, muito mais complexa hoje que há 15 anos, resista aos ataques dos oportunistas e aventureiros bolchevo-direceuzistas . Outra coisa boa (!) é que Chávez nos aporrinhe bastante, com seu contínuo Evo Morales. Acho bom, pois ressurgirá um Tratado de Tordesilhas ideológico: as provocações dos hermanos nos obrigarão a estabelecer as diferenças do país mais forte que somos, em relação aos medíocres delírios andinos. Isso, desde que a economia mundial não se estrepe e encerre o ciclo de bonança que Lula (e nós) teve, por sorte. E, se por desgraça o segundo mandato desorganizar o país, com a volta da inflação, descontrole da Previdência, irresponsabilidade fiscal e outras mazelas, o povo, decepcionado, vai preferir o pior. Os erros de um governo popular criam desejos de um populismo, mais fácil de entender. Lula pode estar abrindo o caminho para anomalias como Garotinho. |