sexta-feira, maio 26, 2006
Adeus, hexa Guilherme Fiuza
| O lateral Roberto Carlos foi levar sua camisa autografada ao presidente Lula antes de viajar para a Copa da Alemanha. Não há o menor vestígio de humildade no comportamento dos jogadores da seleção brasileira. Antigamente, o beija-mão palaciano era restrito ao momento da volta, quando os guerreiros iam buscar sua condecoração após a batalha. Agora, a batalha é um detalhe. Já tem muito brasileiro dizendo que não basta ganhar a Copa, é preciso "dar espetáculo". E lá vão os Globe Trotters verde-amarelos para a Alemanha com a receita perfeita para a derrota.
Os brasileiros são assim mesmo. Oscilam da auto-piedade mais miserável à arrogância mais histérica. Lula é o exemplar-síntese desse caráter. Poucos meses atrás, bombardeado pelo escândalo do mensalão, mal conseguia levantar da cama para governar. A imprensa queria saber quando o governo ia acordar, mas não se ouvia uma palavra do presidente sobre qualquer assunto. Mas o povo esqueceu o mensalão, as pesquisas de opinião embalaram a campanha da reeleição e Lula saiu por aí falando categoricamente sobre tudo. Sua última pérola foi dizer que "infelizmente a lei neste país" impede a programação de gastos públicos a menos de seis meses da eleição.
Seria chocante, absurda, surrealista uma declaração dessas vinda do chefe da nação, bombardeando a maior conquista recente da administração pública no Brasil – a responsabilidade fiscal. Seria de fato ultrajante, se a opinião pública não fosse dócil aos delírios de grandeza de quem está circunstancialmente por cima. Da depressão profunda, Lula passou à onipotência desvairada, a ponto de se considerar acima da lei. E o povo aplaude: ninguém segura esse presidente, ninguém segura o escrete canarinho, conosco ninguém pode.
No terreno da política, esses são os ingredientes perfeitos para o autoritarismo (ver jornada venezuelana). Mas nenhum brasileiro se sentirá às vésperas de uma guinada autoritária quando se está às vésperas de uma Copa do Mundo. E no terreno do futebol, a empáfia e a onipotência são os ingredientes perfeitos para o fracasso.
Milionários e entediados, os jogadores da seleção brasileira pediram, pela primeira vez, para ficarem concentrados em quartos individuais. Nada daquele clima de colégio interno, tendo que conviver com as cuecas e os roncos do companheiro de time. São todos celebridades, donos de fundações, produtos comerciais altamente rentáveis, verdadeiras ONGs ambulantes. Não faz sentido para suas excelências passarem a vida se deslocando em helicópteros e jatinhos e, na hora da Copa, ter que se meter num acampamento de escoteiro. Mas seus empresários e relações públicas já contornaram esse contratempo.
Cafu, o pior lateral direito de uma seleção brasileira campeã, é candidato à sua quarta final de Copa do Mundo. O recorde é de fato impressionante, mas só interessa ao próprio Cafu, à família do Cafu, à ONG do Cafu e aos almanaques esportivos. A permanência dele e de Roberto Carlos, o que foi beijar a mão de Lula antes da hora, no time que vai à Copa é um mistério insondável. Não jogam nada em seus times há muito tempo, não precisam conquistar mais nada esportiva ou financeiramente, e não largam o osso. São titulares da panelinha vitalícia da CBF.
Carlos Alberto Parreira, o técnico, é outro que está empanturrado. Já ganhou Copa, já ganhou dinheiro, já ganhou o mundo. Tudo o que quer é administrar o seu sossego. Palavras bem medidas, convocação de jogadores sem polêmicas, escalação do time como o povo quer. Como se sabe, o povo, assim como o Pelé, entende muito pouco de futebol. Mas essa seleção blasé está convencida de que vai à Alemanha para um desfile de celebridades. Por isso, até o metódico Parreira cedeu à tentação populista de montar um time fashion.
A seleção que vai à Copa está pessimamente escalada. Os laterais Cafu e Roberto Carlos não correm mais atrás de ninguém, e no meio-campo há um único jogador de marcação, o igualmente ancião Emerson. Os dois zagueiros devem estar em pânico. Dali para frente, só malabaristas. E não será sequer um time forte na armação de jogadas, porque o tal quadrado mágico – Ronaldinho, Kaká, Ronaldo e Adriano – é todo de atacantes corredores, com pouquíssimo expediente no departamento de planejamento e articulação do jogo. Um time visivelmente desequilibrado e vulnerável. Mas quem vai querer desafinar o oba-oba?
Ronaldo, que não joga há muito tempo, reapareceu com pinta de halterofilista. A Copa de 2002 ele já ganhou com um futebol minimalista, jogando a la Romário, um Fenômeno nada exuberante. Agora aos 30 anos está sisudo, suscetível, levemente magoado com as cobranças (dos tempos de exaltação ninguém reclama). Ronaldinho Gaúcho é gênio, mas sua genialidade apareceu jogando num time, não num desfile de celebridades. E é um dos mais vulneráveis aos pedidos do povo para que a seleção "dê espetáculo", por sua ainda não domesticada vocação circense.
Futebol não é circo, nem desfile de moda. A história mostra que futebol bonito é futebol eficiente – basta lembrar de Zico, Rivelino, Maradona e Pelé. Jogadores magistrais, mas que jamais se afastaram um milímetro da objetividade. Sempre buscaram o caminho mais direto para o gol, e o espetacular estava tão somente nas formas que encontravam para abrir esse caminho.
Mas o Brasil pentacampeão está empanturrado. A taça não basta. Quer ver Robinho pedalando de marcha-à-ré, Roberto Carlos dando salto mortal, Ronaldinho olhando para um lado e tocando para o outro. Parreira Fashion Week. Está pronta a crônica do desastre.