O GLOBO
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Oque há de mais inquietante em "Elite da tropa", o livro explosivo que os autores classificam de ficção, é que tudo ali poderia ter acontecido, se é que não aconteceu. As semelhanças com a realidade não são meras coincidências. A analogia com personagens reais — governantes, autoridades policiais, políticos — é inevitável, mesmo aparecendo disfarçados com outros nomes. Quando o chefe da Polícia Civil (do livro) manda seqüestrar o dono do tráfico da Rocinha e exige dele R$ 400 mil para pagar dívidas de campanha, além de R$ 10 mil por dia, não há como evitar suposições.
Sente-se o mesmo mal-estar quando o narrador reproduz a seguinte afirmação de um emissário na porta do gabinete do hipotético comandante da PM: "Nunca atrasei. Todo santo mês eu trouxe aqui pro gabinete os 7 mil reais." As deduções que se fizerem serão na certa desmentidas, até pelos autores. Dificilmente, porém, se conseguirá tirar do leitor o gosto amargo da pergunta: e se tudo for verdade?
Os três sabem do que estão falando. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, que foi coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo Garotinho, conhece o tema na teoria e na prática; o ex-capitão da PM Rodrigo Pimentel teve que deixar a corporação por causa de posições críticas como as que adotou no filme "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles; André Batista, capitão, ainda está na ativa.
A degenerescência do Bope é a metáfora da decadência moral do Rio. O processo que vai corrompendo a instituição é o mesmo que promove a promiscuidade entre o poder e a criminalidade — primeiro com o jogo do bicho, agora com o tráfico. A corporação orgulhava-se de ser violenta, mas incorruptível. Matava e torturava como rotina, mas não fazia "arrego" com os bandidos. O primeiro membro da tropa que tentou isso foi executado pelos companheiros. "Nosso batalhão resistiu à corrupção durante muitos e muitos anos", diz o capitão-narrador.
O que o documentário "Falcão" fez com o tráfico, escancarando toda a sua monstruosidade, "Elite da tropa" faz com a polícia, revelando como o organismo foi contaminado pela corrupção e dominado pela política. São esses elos que sustentam o crime organizado. Plagiando um dos meninos do filme de MV Bill e Celso Athayde, que dizia que se acabasse o tráfico acabaria a polícia, sai-se do livro com a impressão de que, se acabasse a polícia, acabaria a política no Rio. É um emaranhado perverso difícil de ser desmantelado — a polícia é corrupta, mas quem manda na corrupção é a política.
"Elite da tropa" é uma manifestação saudável de um corpo doente que despertará muitas reações. O perigo é se, em vez de tratar a doença, resolver-se castigar o diagnóstico.