sábado, abril 29, 2006

Roberto Pompeu de Toledo Os brasileiros – uma nova interpretação

VEJA


Com base nas filas do INSS, funcionário
do governo dá a chave para uma
reveladora visão do país

O presidente do INSS, Valdir Moysés Simão, disse ao Jornal Nacional, da Rede Globo, que foi ao ar na segunda-feira, que as filas nas unidades de atendimento do órgão se devem a uma "questão cultural". Seria um traço do povo brasileiro já tão arraigado na consciência coletiva que contra ele se esboroam as boas intenções das autoridades. A frase completa foi: "Por uma questão cultural, o segurado tem receio e acaba chegando muito cedo". Daí que desde a madrugada se formem as desagradáveis aglomerações em frente aos postos da Previdência.

A "doutrina Simão", chamemo-la assim, tem alcance que vai muito além da questão do atendimento no INSS. Ela abre as portas para uma nova e reveladora via de interpretação do Brasil. À luz da "questão cultural" temos uma explicação, por exemplo, para o fato de um número tão grande de brasileiros morar longe. Tantos bairros bons nas cidades, e eles insistem em se entocar nos cafundós-do-judas. Tantas ruas aprazíveis, arborizadas, com oportunidades de lazer e boas escolas por perto, e eles se refugiam em lugares onde a paisagem é árida e os serviços são precários. Alguns até insistem em se empoleirar em favelas. Tantos lugares bem urbanizados, em que as construções são seguras e os títulos de propriedade passíveis de ser legalizados, e eles preferem a construção improvisada, em lugares de risco e em terrenos dos quais jamais poderão ser proprietários. Só pode ser mania, uma invencível e irracional resistência a mudar de hábitos. Ou, como disse Simão, em formulação mais erudita, uma "questão cultural".

Do fato de morar longe resulta que uma grande massa de brasileiros gaste boa parte do dia a deslocar-se da casa ao local de trabalho, e vice-versa. São três, quatro, cinco ou mais horas em veículos de transporte coletivo que não oferecem conforto nem segurança. Já que insistem em morar longe, deveriam pelo menos equacionar melhor seu sistema pessoal de transporte. A indústria nacional produz bons automóveis – por que não adquirir um? Para quem não gosta de dirigir, há os táxis. E a vida moderna oferece até alternativas avançadas, como os helicópteros. Não. Eles preferem espremer-se em ônibus, vans ou trens. Tal a promiscuidade nesses meios de transporte que no Rio de Janeiro acaba de ser adotado o critério de reservar vagões só para as mulheres no metrô e nos trens de subúrbio. É mais trabalho que se dá às autoridades, resultado de hábitos da população tão arraigados que, como desvendou Simão, em seu precioso insight, só podem provir de uma questão cultural.

Tome-se outro setor, o da saúde. É fato conhecido que o Brasil possui bons hospitais. Também é fato conhecido que temos uma boa medicina, equiparável à dos países mais desenvolvidos e exercida por profissionais que atendem em consultórios bem montados e bem localizados. Que faz a maioria da população, porém? Prefere as filas (sempre as filas!) dos postos de saúde, ou as macas armadas nos corredores de abarrotados hospitais públicos. É "questão cultural" em estado puro. Há hospitais que até parecem hotéis de luxo, tal a excelência de suas instalações e do atendimento. A esmagadora maioria os rejeita em favor de uma assistência apressada, oferecida em prédios arruinados.

Volte-se o olhar para o ensino e o emprego, e o panorama é similar. Em cada cidade há um número considerável de boas escolas particulares, mas a massa prefere a aventura incerta da escola pública. No ensino superior, ao contrário, as melhores ofertas estão na universidade pública. Mas a maioria – cruel paradoxo – prefere as faculdades particulares, nas quais o ensino é pior e se tem de pagar. Isso quando se chega à faculdade, pois na maior parte dos casos se prefere nem chegar perto. No emprego, esses mesmos que optaram pelo ensino fundamental público e pelo ensino superior privado, ou que prescindiram do ensino superior, vão agora engrossar as fileiras daqueles que se jogam de corpo e alma nos cargos mal pagos, nas ocupações temporárias e nos arranjos sem carteira assinada. São costumes que, por ter origem cultural, não se mudam com facilidade. E no setor da segurança pública, então? Mora-se nas zonas mais desprotegidas, convive-se com bandidos na esquina de casa, e vigora até a compulsão de imiscuir-se no meio de tiroteios – daí a freqüência de vítimas de balas perdidas.

A maioria da população brasileira não viaja ao exterior. Teima em ficar em seu canto e, ao recusar-se a conhecer os centros mais avançados, priva-se de padrões de comparação que seriam úteis ao desenvolvimento pessoal e ao progresso coletivo. Eis outro traço de infaustas conseqüências. Demorou para que compreendêssemos o comportamento bizarro, na contramão da lógica mais comezinha, da maioria dos brasileiros. Foi preciso esperar por um funcionário do governo do PT. Outros governos, carentes de raízes populares, não teriam a mesma legitimidade. Este conhece o povo. Quando um seu porta-voz levanta a teoria da "questão cultural", é porque sabe do que está falando.