terça-feira, abril 25, 2006

O Brasil e a questão da latinidade

O Brasil e a questão da latinidade

Artigo - JOSÉ A. DE FREITAS NETO
Folha de S. Paulo
25/4/2006

Continuamos olhando para modelos europeus e evitando compreender os processos dos países hispânicos

A latinidade ocupou o noticiário depois da vitória da Unidos de Vila Isabel no Carnaval carioca deste ano. O desfile produziu uma apresentação de alegorias que abordavam pirâmides pré-colombianas, manifestações folclóricas e artesanais indígenas, referências às "repúblicas de bananas" e a Bolívar. Essa harmonia, recompensadora para a Escola de Samba, nem sempre é condizente com os processos vivenciados pelos povos das Américas.
Para os historiadores que estudam a região, esse é um momento para propor reflexões sobre a latinidade e pensar sobre o pouco espaço que os temas latino-americanos encontram atualmente em nossas escolas. O Brasil é cercado por países que foram colonizados pela Coroa espanhola e, para desgosto de muitos, compõe o mito de que a América Latina é um todo homogêneo.
A latinidade torna-se, dessa forma, um elemento de identidade, e, para que ela se constitua e se mantenha, é necessário negar diferenças existentes e construir um universo de semelhanças. Na busca de elementos que buscamos incorporar ou negar realizamos fragmentações e junções que descontextualizam as referências histórico-culturais que os produziram.
Na América Latina esse processo é marcado por longos silêncios e uniformizações. O termo "latino", por exemplo, é uma invenção que enaltece as heranças da tradição européia e obscurece a participação dos nativos deste continente e dos africanos trazidos para estas terras. Cria uma filiação que remonta às origens romanas e que muito pouco dizem sobre a América. Hoje o adjetivo "latino" está associado ao subdesenvolvimento econômico e às precárias instituições democráticas apontadas pela Cepal a partir da década de 1950, como demonstrou o pesquisador Héctor Bruit.
Apesar das homogeneizações decorrentes dessa "latinização", é inegável que, do México à Patagônia, temos processos culturais específicos em cada área. Ao mesmo tempo nutrimos supostas perspectivas comuns, geradas a partir do processo de colonização, que integram os povos das Américas em seu imaginário de uma "pátria comum".
Para os estudantes brasileiros, a história da América tem sido negligenciada. Os conteúdos desta região que fala espanhol são bastante restritos em nossas escolas. E, quando existem, são quase sempre apresentados como "conseqüência" da história européia.
Em linhas gerais, podemos dizer que os conteúdos nas escolas de ensino fundamental e médio se restringem a alguns lugares-comuns: descobrimentos e colonização; as independências; populismo e as ditaduras militares no século 20. No primeiro caso, destaca-se a exploração e a "incapacidade" indígena para a vida política; os processos de independência são apresentados prioritariamente como resultado da ação de Napoleão na Península Ibérica; o populismo é visto como uma prática política discutível que pereniza a figura do caudilho. As ditaduras são apresentadas como mero reflexo das questões ideológicas da Guerra Fria. Em quase todos os exemplos a opção por uma lógica externa, que nega aos americanos a condição de construtores de suas histórias.
A rigor não há problema nessa seleção de conteúdos, mas a pergunta a ser feita é sobre qual a abordagem que propomos diante deles. Nossos estudantes são submetidos a muitos detalhes das revoluções européias e a praticamente nada da Revolução Mexicana ou da nicaragüense. Busca-se explicar os conflitos dos Bálcãs e silencia-se sobre situações na América Central e em países mais próximos, como Bolívia e Equador. O Brasil teve atuação destacada nas relações com seus vizinhos, especificamente na região do Prata no século 19. Ainda hoje nossos vínculos com os países da América Latina são indiscutíveis, como atestam a missão militar no Haiti e as constantes discussões com os parceiros do Mercosul.
No entanto, continuamos olhando para modelos europeus e evitando compreender os processos dos países hispânicos, a vivacidade de suas culturas, as formas de resistência que esses povos praticaram e praticam em diferentes regiões. Diante de uma lógica européia, da qual também partilhamos, mas que não é exclusiva, pouco compreendemos sobre esse continente.
A América hispânica não é apenas um universo de exotismos. Ela é um terreno de convivências que tensionam modelos e que buscam se reinventar diante de sonhos e aspirações que nem sempre são explicitados. A visão de instabilidade, que comumente se atribui à América, é um julgamento feito por lentes que desconhecem as matizes e articulações de um continente com muitas mazelas.
Para não mantermos uma visão estereotipada sobre a latinidade é fundamental que ampliemos nossos conhecimentos sobre esses processos históricos, inserindo conteúdos e informações de países que têm uma história que merece ser estudada. Os temas de história da América têm que ser recuperados dentro das propostas educacionais para que possamos saber mais sobre nossos vizinhos. É muito difícil pensar em qualquer forma de integração pautada no desconhecimento e no desmerecimento.

José Alves de Freitas Neto, 34, é professor-doutor no departamento de história da Unicamp e secretário da Associação Nacional de Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha.