quinta-feira, abril 27, 2006

Não são desnutridas




Artigo - Carlos Alberto Sardenberg
O Globo
27/4/2006

É preciso escrever com todas as letras: não existe o problema de desnutrição infantil no Brasil. Essa é a conclusão inevitável da pesquisa denominada "Chamada Nutricional", realizada no ano passado, no polígono da seca, talvez a região mais pobre do país, que reúne os estados do Nordeste, mais Espírito Santo e Norte de Minas Gerais.

Pesadas e medidas 17 mil crianças, uma amostra ampla, verificou-se que apenas 6,6% das crianças de menos de 5 anos podem ser classificadas como desnutridas. Claro que apenas uma criança desnutrida é uma tristeza imensa — famintas, elas perdem a capacidade de sorrir — mas do ponto de vista de políticas públicas, trata-se de estrondoso sucesso, como mostra a evolução dos números.

Trinta anos atrás, tinham desnutrição crônica nada menos que metade das crianças, um indicador africano; já em 1989, o número caíra para 27,3%; em 1996, para 17,9%; e continuou caindo até os 6,6% da pesquisa do ano passado, feita num mutirão do governo federal, governos estaduais, prefeituras, universidades e o Fundo das Nações Unidas para a Infância. No total, são cerca de 150 mil crianças com peso e altura inferiores ao padrão. De novo, há aí um problema, mas muitíssimo menor do que se costuma dizer no país.

Lembram-se da campanha eleitoral de 2002, quando o PT falava em 50 milhões de miseráveis e milhões de crianças famintas? Pois já em dezembro de 2004, conhecidos os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE, verificava-se que na população adulta brasileira, acima dos 20 anos, havia apenas 3,8% de pessoas com déficit de peso. Considerando que, pela regra internacional, toda população tem entre 3% e 5% de pessoas naturalmente abaixo do peso (estruturalmente magras) se poderia dizer então: não existe problema de fome entre os adultos.

Comentava-se então que a PNAD não medira as crianças, mas era difícil imaginar que crianças desnutridas viessem a ser adultos alimentados. Esta última pesquisa fecha o círculo: na região mais pobre, há 6,6% de crianças abaixo do peso, apenas um pouco superior ao número aceitável, de 3% a 5%.

A PNAD de 2004 já mostrara que o Fome Zero era uma agenda equivocada. Lula repetia pelo país e pelo mundo afora que seu objetivo era conseguir que todos os brasileiros fizessem três refeições por dia. A inexistência de famintos mostrou que isso já acontecia. Agora, a pesquisa entre as famílias do polígono das secas tratou de verificar e, sim, quase 95% delas faziam as três refeições.

Isso foi o resultado de políticas sociais públicas e privadas. Por exemplo, verificou-se que: quase 100% das mães fizeram o exame pré-natal; o índice de fecundidade caiu; idem para o número de analfabetos; e os serviços públicos se ampliaram (95% das crianças têm energia elétrica nas casas onde moram, 76% com rede de abastecimento de água).

O Bolsa Família, sucessor dos antigos programas de distribuição de renda iniciados em 2001, atinge 35% das famílias pesquisadas. Ou seja, este é um fator importante, mas não é o dominante no processo de redução da desnutrição.

Conclui-se daí que a agenda política, especialmente a da esquerda, andou equivocada nos últimos anos. Por exemplo, não era preciso reinventar os programas sociais e, talvez, nem lhes destinar recursos adicionais no volume atual. Os resultados agora medidos mostram que o processo avançava com eficiência em quase todos os setores: as crianças estão todas nas escolas (com merenda), as mães têm assistência, há mais serviços públicos.

Ou seja, o foco das políticas públicas não é mais oferecer comida, mas melhorar o ensino e a educação, esta sim uma prioridade mal atendida, conforme o oportuno artigo apresentado nesta seção por Ali Kamel. Com certeza, é preciso mais dinheiro para formar e remunerar os professores do ensino fundamental. A merenda está distribuída, agora é preciso distribuir computadores.

Em termos políticos, trata-se de concluir que a pobreza sofreu forte redução no país nas últimas décadas, com uma combinação de programas e algum crescimento econômico. Continuamos com desigualdade forte e baixo crescimento, sendo que parte da desigualdade é causada e/ou reforçada por políticas públicas.

Essa é a agenda, bem mais complexa do que sair por aí dizendo que o neoliberalismo criou 50 milhões de miseráveis.

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. E-mail: sardenberg@cbn.com.br.