O GLOBO
BAKU. A palestra do filósofo francês Jean Baudrillard no seminário da Academia da Latinidade na capital do Azerbaijão teve características especiais, além de seu pessimismo diante da inutilidade do ser humano no mundo moderno ("Este é um mundo que não tem mais necessidade de nós. O melhor dos mundos não tem necessidade de nós") que já abordei em coluna anterior.
Num país assolado pela gripe aviária e por uma epidemia de Aids, Baudrillard foi fundo na associação dessas doenças modernas com a decadência humana. O câncer, doença que o atormenta há anos, foi usado mais uma vez, mas de maneira ainda mais ácida, em suas metáforas sobre as patologias que destroem o ser humano e o mundo.
Baudrillard fez também uma ampla análise dos atentados terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos e, nesse seu novo texto, que atualiza antigas obsessões, criou a expressão "acontecimentos-bandidos", em contraposição aos "estados-bandidos" cunhado pela política externa do governo americano. O encadeamento desses acontecimentos, que podem ser atos terroristas, cataclismos naturais como a tsunami ou o furacão Katrina, ou ainda doenças universais como a gripe aviária ou a vaca-louca, provocará uma "revolução impossível" no mundo, que Baudrillard vê como se estivesse contaminado por um vírus letal que o corrói.
O terrorismo, por exemplo, teria um impacto mais sutil e radical, "de uma forma viral e insaciável", do que a impossibilidade de simplesmente mudar a ordem mundial.
Baudrillard diz que o terror, depois de se infiltrar nos meandros da imaginação e da informação, não precisará nem mesmo dos próprios terroristas, pois seu espectro continuará assustando o planeta: "Se, segundo Marx, o fantasma do comunismo assombraria a Europa, hoje é o fantasma do terror que assombra o planeta inteiro", afirma Baudrillard.
O filósofo francês considera a gripe aviária — "onde os terroristas sãos os canários selvagens" — um belo exemplo de acontecimentos-bandidos "carregados de farsa e de terror". Segundo ele, o máximo que se conseguiu até agora para combater o mal foi "seqüestrar os animais e vacinar os migrantes". A comunidade internacional entrou em pânico "sob o signo do vírus do terror e do terror do vírus", brinca com as palavras Baudrillard.
Usando e abusando de linguagem e metáforas médicas, Baudrillard diz que as medidas de segurança acabam matando as liberdades individuais dos cidadãos, "terminando por criar efeitos perversos auto-imunes: o anticorpo se volta contra o corpo e provoca mais estragos que o próprio vírus".
Na ausência de solidariedade verdadeira entre as nações, Baudrillard diz que é preciso criar um Mal Absoluto, que acaba gerando uma autodefesa delirante, consequência da "perda de imunidade total do imaginário".
Por isso, segundo ele, o vírus é um produto da mente, "e se o contágio pode ser assim tão fulminante, é porque as imunidades mentais, as defesas simbólicas, estão perdidas há muito tempo".
E a espécie humana, pergunta Baudrillard, não é portadora de inúmeros germes, e não deveria ela, por isso, ser "eutanasiada" com urgência ?. Para o filósofo, é preciso interrogar-se sobre as razões do aparecimento do vírus e sobre a fonte dessas patologias novas, não apenas no reino animal mas nas sociedades humanas em geral: "Se pode imaginar que elas são conseqüência do confinamento, da promiscuidade, de uma concentração e uma superexploração monstruosas, seqüelas inevitáveis do processo industrial".
Para ele, não há diferença entre o ambiente animal e o humano, pois "as mesmas condições produzem as mesmas anomalias virais e infectuosas". A espécie humana, levada a engolir, em todos os níveis, "uma louca farinha animal", é o reflexo dessa vaca louca. Segundo Baudrillard: "Todas essas mensagens pulverizadas; toda essa farinha publicitária e midiática; todos esses dejetos da atualidade com que nos empanturramos — equivalente a essa farinha de ossos, de cadáveres e de carcaças que empanturra os bois — tudo isso aproxima nossa espécie da encefalite esponjosa".
O filósofo francês vê nos últimos anos "uma convergência de todo tipo de acontecimento onde se equivalem as formas de terror — a irrupção das forças naturais se confundindo com os atentados terroristas, e esses se confundindo com as catástrofes naturais". Ele lembra que um grupo terrorista pode reivindicar a autoria de um acidente, ou um governo pode encobrir um ato terrorista atribuindo-o a um acidente.
E cita a secretária de Estado americana, Condolezza Rice, classificando a tsunami como uma "maravilhosa oportunidade" de lutar contra as forças do Mal, e, ao mesmo tempo, governos islâmicos saudando os estragos do furacão Katrina como um ato terrorista vindo do céu para castigar os americanos.
É possível objetar, diz Baudrillard, que as grandes catástrofes atingem de preferência as populações mais abandonadas, "exercendo uma discriminação tão feroz quanto a globalização". Mas ele relativiza essa injustiça: "Ao mesmo tempo, elas servem para revelar essa discriminação".
Até mesmo o turismo internacional, alvo de ataques terroristas em diversas partes, não escapou da visão ensandecida de Baudrillard: "O turismo universal, portador da troca generalizada de todas as culturas, equivalente humano de todos os fluxos de capitais, infiltração deletéria e avatar moderno da colonização e da guerra, é compreensível que esse turismo surja para os terroristas como a encarnação de todos os valores que eles execram, como uma forma de infiltração viral, o que ele é na verdade. O turismo é por si só aterrorizante, é uma forma de terror, e só pode receber o terror em resposta". (Continua amanhã)