artigo - Ricardo Sennes |
O Estado de S. Paulo |
26/4/2006 |
Poucos temas têm sido tão controversos na agenda internacional do Brasil como o regional. Está, contudo, cada vez mais evidente que o Brasil, pela história de sua geografia ou pela geografia de sua história, é hoje um pólo regional inequívoco, embora disponha de um projeto malparado de se tornar uma liderança. Entre esses dois papéis existe um fosso razoável a ser superado. A elite do País segue dividida quanto a como lidar com o espaço regional sobre o qual o Brasil exerce, queira ou não, enorme projeção. É gritante o baixo grau de conhecimento que o País tem de seu entorno e da profundidade de sua inserção nele. Tal desconhecimento tem levado o País a reproduzir uma agenda regional antiga e custosa, eivada de riscos e, ao mesmo tempo, com resultados muito aquém do seu potencial, com poucas e honrosas exceções. A presença regional do Brasil transborda interdependência. Esta se manifesta em várias dimensões: preservação ecológica (Pantanal e Amazônica), combate a epidemias humanas (aids, febre amarela) e animais (febre aftosa e gripe aviária), combate ao crime organizado (contrabando, drogas e armas), matriz energética (gás e eletricidade), comércio externo (20% das exportações brasileiras se destinam à região, sendo 90% desse total produtos industrializados), a "economia de fronteira" (do oeste da Bolívia até o Uruguai, o real é moeda corrente e a circulação de insumos e trabalhadores é uma constante), gestão dos recursos hídricos (aqüífero e bacias regionais) e questões de segurança aérea, entre outros. Ou seja, a definição de como gerir essa interdependência deve ser a base da estratégia do Brasil, mesmo porque revertê-la, se desejável fosse, já é impraticável. Uma das marcas da atuação regional do País tem sido a dubiedade. Projetos de integração e de parcerias se entremeiam com medidas típicas de fronteira e recusas em aceitar políticas e estratégias comuns. Raramente o governo atua de forma coesa nos temas regionais. É evidente, por exemplo, a cisão da área econômica em tratar o Mercosul como instância de interlocução. O Ministério da Fazenda segue ignorando sistematicamente esse projeto, enquanto o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o BNDES tratam, cada um a seu modo, de lhe dar apoio. Outro exemplo que salta aos olhos é o fracasso da política do País para com o Paraguai. A interação Brasil-Paraguai no que tange aos negócios lícitos e ilícitos é evidente. Essas são indústrias que articulam interesses e atores dos dois. Trata-se de uma evidente integração econômica informal. Ao não reconhecer isso, o País segue uma política tradicional, cara e ineficaz de combate ao contrabando e ao tráfico, na qual a grande ausente é a agenda positiva para com o país vizinho. Impõe-se, nesse caso, uma enorme mudança na forma de estruturar as relações bilaterais e definir negociações que combinem, por exemplo, a dívida de Itaipu com a constituição de um cadastro comum de automóveis, ou ainda linhas de crédito do BNDES para projetos no Paraguai com metas claras de combate ao tráfico de armas e drogas. Além de mais baratas e menos paternalistas, a definição de uma nova agenda de compromissos e interesses pode fazer com que daqui a 20 anos a situação seja algo diferente do que tem sido nos últimos 40 anos. Um exercício semelhante de aggiornamento precisa ser feito em relação à maioria dos países da região, com destaque para a Colômbia e a Bolívia. No primeiro caso, a sistemática recusa do País em considerar seu papel no monitoramento e combate ao tráfico de drogas, do qual o Brasil é peça importante, deu lugar à unilateralidade da política dos EUA na região dos Andes e ao isolamento do Brasil nesse tema de importância estratégica. No que tange à Bolívia, evidencia-se a insustentabilidade de uma agenda calcada pura e simplesmente no tema energético. Uma agenda institucional e social, combinada com os enormes recursos pagos mensalmente pelos investimentos brasileiros ao Fisco daquele país, deve focar os grupos políticos e sociais mais afinados com uma parceria estratégica e de longo prazo. Finalmente, no campo em que as relações do Brasil estão mais institucionalizadas, o Mercosul, o congelamento da agenda nos temas comerciais tradicionais (tarifas, regras de origem, cotas e salvaguardas), combinado com descabidas propostas de criação de um Parlamento e de uma moeda comum, dão o tom da esquizofrenia da situação. Enquanto isso, deixam-se de lado medidas essenciais, como a agilização radical dos procedimentos aduaneiros e o avanço urgente no campo da integração financeira e uso das moedas locais. Medidas como essas poderiam, de fato, dar um choque de credibilidade ao Mercosul e destravar várias outras agendas. A solução criativa do Sivam, nos anos 1990, deixou uma marca de como, para além das questões de fronteira, inovação e modernidade podem ser a melhor forma de enfrentar situações de interdependência multidimensional. Nesse caso, a solução combinou o primado da informação sobre o da ocupação de terreno, da multidimensionalidade sobre o da especialidade, da solução cooperativa e potencialmente regionalizada sobre a unilateral. As mesmas inventividade e praticidade são necessárias e urgentes para outras dimensões da ação regional do Brasil. O engajamento regional do Brasil deixou de ser uma opção e já se tornou uma circunstância. O Brasil, como país intermediário, com recursos limitados de atuação internacional, deve definir uma estratégia compatível com essa sua condição e buscar uma agenda heterodoxa e pragmática, ora utilizando meios oficiais, ora meios informais, ora calcada na atuação direta do Estado, ora mobilizando recursos privados e sociais. O que não pode é improvisar na defesa de nossos interesses. |