domingo, março 26, 2006

Gaudêncio Torquato A Novíssima República dos coronéis

ESTADÃO
 
Devagar com o andor. O País não está inaugurando nenhuma crise. Apenas dá seqüência à histórica crise de valores, com origem no patrimonialismo, que corrói os padrões da política e solapa a força das instituições. Não é de hoje que o Judiciário é acusado de ser apêndice do Executivo. Não são novas as suspeitas de que os membros do Legislativo, em sua maioria, tomam decisões fi siológicas, fazendo a vontade do presidencialismo imperial.
A História do Brasil - no Império e nos ciclos da República - sempre acolheu a utilização do
dinheiro, dos serviços e dos cargos públicos como processo usual de ação partidária. A relação entre Poderes nunca se deu de forma plenamente in dependente e autônoma, como reza a Carta Magna. A novidade, isso sim, reside no fato de que a corrupção ganhou apara to tecnológico. A surpresa está, por exemplo, no fato de que políticos não têm mais pejo quando flagrados com a boca na botija. E presidentes de al tas Cortes de Justiça já não agem como sábios de alto saber jurídico, mais circunspectos que audaciosos, mais reverendos que aclamados recatados, como pregava Bacon.
Na República Velha (1889-1930), o 'coronel' usava o poder de cacique para controlar currais eleitorais e perpetuar o sistema de poder. En tregava o envelope fechado com o voto ao 'eleitor de cabresto', obrigado a depositá-lo na urna. Se o cidadão queria saber em que votara, o carão era ríspido: 'Tá besta, cabra da peste, não sabe que o voto é secreto?' Hoje o voto continua secreto, mas a vida privada do homem pacato, a quem o Estado deveria dar segurança, não recebe proteção. Há um 'coronel tecnológi co', a mando do Estado, que abre a janela secreta das contas de 'um simples caseiro' (como Lula faz questão de frisar) que teve a coragem de desmentir o mais poderoso ministro do gover no. O antigo 'coronel', no papel de instituições sociais, segundo Victor Nunes Leal, compunha rixas e desavenças, proferia arbitramentos que os interessados respeitavam, enfeixava extensas funções policiais, mandando prender e soltar pessoas, às vezes usando o auxílio de empregados, agregados ou capangas.
E quem não há de reconhecer uma pitada de herança 'coronelista' na decisão do presidente
da segunda mais importante Corte do País, o Superior Tribunal de Justiça, quando proibiu o PMDB de realizar prévias para escolher o candidato à Presidência da República? Quem deixará de ver na decisão 'técnica' do magistrado o dedo político do padrinho, o ex-presidente da República e atual senador José Sarney? Para arrematar a suspeita, o próprio ministro Edson Vidigal acena com a idéia de se candida tar ao governo do Maranhão. 'Quem desloca um simples marco fica desonrado; mas o principal removedor de balizas é o juiz injusto quando define erradamente as terras e as propriedades.' Francis Bacon, autor da frase, faz falta. E o que di zer das decisões polêmicas do presidente da mais alta Corte, ministro Nelson Jobim, a última proibindo o depoimento do caseiro Francenildo na CPI dos Bingos? A se confirmar a especulação de que vai voltar à seara política, com o respeito que um magistrado merece, ganhará força a suspeita de que o DNA do 'coronelismo' teria contaminado suas decisões.
A sensação de que o sangue dos antigos patriarcas da política corre nas veias dos
atores institucionais, assumindo as formas do fisiologismo, mandonismo e apadri nhamento, vale também para os magistrados nas esferas estaduais. Só mesmo entre nós ocorre inusitada greve em defesa do nepotismo, a franquia para empregar parentes nos tribunais. O santuário da Justiça há de ser preservado. A desmoralização das Cortes apagará os últimos vestígios de ânimo de uma sociedade a caminho da desesperança. A elevação mo ral da identidade do Judiciário, a partir dos tribunais superiores, passa pelo critério de escolha dos ministros.
Não pode ficar na alçada exclusiva do presidente da República. O argumento de que não há risco de atrelamento do STF ao Executivo, porque a cadeira da toga é vitalícia, como pensa o ministro Marco Aurélio, não resiste à interpretação de que se desenvolve um sentido de corpo entre nomeado e nomeador, com simpatias recíprocas. A alma humana, e os juízes não podem dela se apartar, é cheia de regozijos para com patrocinadores.
Quanto ao Executivo, a observação é de que o presidente refina o perfil de 'coronel'. Em um mês, fez quatro lançamentos de pedras fundamentais, três anúncios de obras de expansão e duas
visitas a obras em andamento (Estado, 22/3), principalmente em lugares que lembram os cur rais eleitorais, enquanto posa com velhos, abraça crianças e se queixa de ser criticado por gastar com os pobres. (Acaba de sair um estudo do economista Márcio Pochmann, da Unicamp, ligado às hostes petistas, mostrando que os gastos sociais do governo caíram 2,7% nos primeiros três anos de Lula em compa
... continua velha, o que faz é trocar de roupa de vez em quando
ração com os dois últimos de FHC.) Em campanha aberta, continua com o bordão: sou o melhor presidente do Brasil desde Pedro Álvares Cabral. Convoca o presidente do Senado, Renan Calheiros, para pedir-lhe que acalme os ânimos e tome a defesa do ministro Palocci, mas ataca o Congresso por não votar o orçamento. E se for comprovado que a Caixa quebrou o sigilo do caseiro, Palocci sai? Lula dirá que não tem nada que ver com isso. A boca pedirá punição do culpado, enquanto um braço escondido se estenderá para acolhê-lo.
No âmbito parlamentar, o vale-tudo começou. O PT, como o velho PSD, come pelas bordas. O
PSDB, como a UDN, mastiga nos centros. O PMDB, repartido em frações, desafia as leis da física e da aritmética: mais dividido, maior fica. Os governistas lutam para entronizar as denúncias - invasão da privacidade, quebra do sigilo bancário, uso do caixa 2 - no pavilhão da banalização. Os oposicionistas azeitam as armas para a batalha eleitoral. A Novíssima República continua velha.
O que faz é trocar de roupa de vez em quando.
P. S. - A casa nº 25 do Lago Sul de Brasília, de um condomínio da Novíssima República, está fechada para balanço. E o coronel, sob suspeita.