sábado, março 25, 2006

Fronteiras com a República de Saló Fernando Gabeira



 blog do Gabeira (25/03/06)

"Então , você vai falar de erotismo na política (*)? Vi na internet."

Apenas levantei a cabeça da piscina e disse não, quase insultado pela interlocutora. De fato, andei estudando o tema erotismo e política. Passei longe do Brasil, li extensos debates na Suprema Corte norte-americana, viajei, mentalmente, à República de Saló, criada por Mussolini, no norte da Itália, e transfigurada por Pasolini num filme provocador.

Embora estivesse trabalhando o tema, não imaginei, em momento algum, que pudesse me ajudar a entender a realidade brasileira.

A República de Saló, uma referência talvez. Pasolini fixou-se nos anos 43-44, no fim do fascismo. Colocou num castelo oficiais de Mussolini e suas vítimas. Entraram num processo dantesco, cruzando os círculos da obsessão, da merda e do sangue.

Saló é referência porque trata de desesperados processos de declínio. Pasolini inspirou-se numa novela de Sade, que por sua vez, nos tempos de Luís 14, referia-se à Sodoma. Velho tema da decadência.

Pasolini pensava um pouco mais longe. Saló foi seu último filme. Visava também o capitalismo tardio na Itália. Sua última entrevista foi amarga. Para ele, o sistema acabou com as pessoas, transformando-as em máquinas que lutam entre si. E a Itália, com raras exceções, tornara-se um poço de serpentes venenosas e desagradáveis. Suicídio ou exílio, dilema que o atormentava.

Nossa situação é menos desesperadora. Não houve um processo radical como em Saló. Houve até casamento, no contato entre o círculo clientes e garotas de programa.

Por mais que tenha mergulhado no tema, seria uma armadilha deixar me perder nas tramas sexuais. Saíram duas biografias de Stalin. Ele, sim, é um bom instrumento de análise. Sobretudo a frase: "Quantas divisões tem o Papa?".

Num contexto democrático, Lula alterou essa pergunta: quantos votos tem a chamada opinião pública? Até que ponto podemos nos chocar com ela, sem perder fôlego nas pesquisas eleitorais?

O que segura o governo é a identificação popular com Lula. Sua viagem à Inglaterra confirmou o conto de fadas: retirante que chegou num pau-de-arara e tornou-se presidente. Ele sabe disso e, ao voltar, disse em Pernambuco que a rainha era muito simpática etc., mas gostava mesmo era de voltar para os braços de seu povo.

O forte processo de identificação não se rompe assim de um dia para outro. Seria preciso uma sucessão de erros para confirmar, com seu comportamento, os preconceitos aristocráticos sobre o povo. Aí, sim, haveria um processo de rejeição, pois a imagem não implicaria mais em auto-estima.

De um lado, Lula é esperto bastante para não deixar que isso aconteça. De outro, tem qualidades inegáveis para que as pessoas se inspirem nele.

De volta à frase de Stalin, o único problema de um processo como esse é a onipotência. É o flanco por onde passam os erros. Não que seja um governo perseguidor. Defende-se de forma atabalhoada. Desde a tentativa de expulsão do correspondente do "New York Times" aos dias de hoje, os erros foram sempre no sistema defensivo.

Quando interrompeu o depoimento do caseiro Francenildo Costa apenas deu um tiro no pé. Multiplicou a repercussão sem omitir os detalhes essenciais. Erro político dentro das regras do jogo: Constituição, Supremo.

A quebra de sigilo bancário do caseiro nos leva a um outro patamar. Era um segredo de polichinelo. Nos corredores do Parlamento, as pessoas diziam que uma bomba iria revolucionar o caso. Esperavam confundir. Quantos votos a rejeição ao crime da quebra de sigilo Lula perderá? É muito cedo para determinar. É preciso cuidado com os idos de março. O mês começou com previsões aqui e ali de que Lula seria imbatível. Baseavam-se em pesquisas reais. Mas tanto as pesquisas como o processo de identificação continham seu antídoto: a sensação de onipotência, o achado de uma linguagem direta com o povo, sem mediações do debate político.

Desde o fim da ditadura nunca senti um clima político tão envenenado. Antes das Diretas talvez, com o general Newton Cruz ocupando Brasília. Mas aquilo era tão nitidamente o passado, os estertores do regime militar. Não nos preocupávamos em olhar para trás.

Se no regime democrático, entre os que teceram as tramas do Brasil de hoje, começa uma temporada de golpes abaixo da linha da cintura, aí então é desolador.

Nos círculos dantescos de Saló, entramos, talvez, no da obsessão, não pelo poder sobre os corpos, mas sobre a máquina do Estado. Deus nos livre dos círculos seguintes da República de Saló. E também das serpentes que Pasolini via na Itália, no seu radical dilema: exílio ou suicídio.

Espero que Lula compreenda que mesmo sem ter votos, o que com nossa onipotência, às vezes, chamamos resto do mundo, observa os passos do Brasil e, pelo menos em tese, abomina certas práticas.

Existem limites que não devem ser franqueados, senão a carruagem da rainha vira abóbora lá fora, antes de virar aqui dentro.

Pensar que estamos no limiar de uma campanha, que, dentro em pouco, discutiremos nas ruas dá calafrios. Não por medo do trem de horrores. Mas por ter de enfrentar situações típicas de um estado policial.

(*) Ciclo de Conferências "Arte, Cultura e Erotismo" realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro