domingo, fevereiro 26, 2006
EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO DECISÃO ARRISCADA
A Lei de Crimes Hediondos (LCH) surgiu como reação de uma sociedade acossada pela barbárie e pela violência. Nesse contexto, causa apreensão a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar inconstitucional o mecanismo da LCH que vedava a progressão de pena para condenados por crimes gravíssimos, como homicídio qualificado, tortura, seqüestro, estupro e tráfico de drogas. Esse era um dos itens fundamentais da LCH, aprovada em 1990.A progressão, prevista para os crimes comuns, permite que, depois de cumprido um sexto da pena em regime fechado, o preso requeira a mudança para o semi-aberto -em colônia agrícola ou industrial. Após mais algum tempo, pode evoluir para o aberto -no qual apenas dorme no estabelecimento.O Supremo teve, é claro, as suas razões. O maior pecado da LCH é que, ao estabelecer o fim da progressão de forma linear, ela colide com o princípio da individuação da pena. O juiz é instado a considerar o tipo do delito e deixar em segundo plano as circunstâncias em que foi cometido. Daí podem resultar distorções na proporcionalidade entre delitos e penas.Pela LCH, alguém que venda uma quantidade pequena de droga a um amigo (o que caracteriza tráfico) deve cumprir sua sanção integralmente em regime fechado. Já quem mate intencionalmente uma pessoa, desde que sem qualificadores como motivo torpe, tem direito à progressão.O caso concreto avaliado pelo Supremo é um habeas corpus redigido pelo próprio preso, um pastor evangélico condenado a 12 anos e três meses por atentado violento ao pudor praticado contra três crianças entre 6 e 8 anos. O acórdão não tem aplicação automática para outros casos, mas deverá provocar uma avalanche de pedidos de benefício à Justiça. Cada um deles terá de ser avaliado pelo juiz de execuções penais para saber se o réu preenche ou não os requisitos legais para a progressão.O risco da decisão do STF é transmitir à sociedade a sensação de que a impunidade foi chancelada pela mais alta corte do país. Com efeito, sem o mecanismo impeditivo da progressão, fica valendo a regra geral, que dá aos autores de crimes infames condenados à pena máxima -30 anos- a possibilidade de serem contemplados com benefícios depois de cumprido apenas 1/6 da sentença, isto é, míseros cinco anos.Deve-se converter essa decisão polêmica numa oportunidade para aperfeiçoar a legislação. É importante que o Congresso Nacional aprecie projeto de lei que, sem recair nos mesmos vícios da Lei de Crimes Hediondos, regule de forma mais rígida a concessão de benefícios para quem cometeu crimes que a sociedade considera intoleráveis. É o caso, por exemplo, de instituir como período obrigatório de reclusão ao menos um terço da pena.