Numa noite de domingo, Maria Bethânia desceu correndo a rampa do palco e pediu a bênção a Baden, Tom e Vinicius, nosso poeta que vem fazendo o Rio chorar de saudades de si mesmo no filme que conta seu caminho de paz e amor. Cantando como numa verdadeira oração, Bethânia terminou pedindo a bênção à Cidade Maravilhosa.
A cidade é que deve pedir a Bethânia que a abençoe com sua luz e dignidade. Essa sacerdotisa de deuses múltiplos, em noites assim, nos faz recuperar a fé no que temos de melhor como povo, a fé na cidade em que Bethânia escolheu viver, terra natal da Bossa Nova, como nos contam, nas telas do Rio, Menescal e Carlos Lyra.
O inventário da fortuna artística da cidade nos dá alegrias, reconstrói um antigo estado de espírito, nos reconcilia com nossas memórias e ajuda a não sucumbir à amargura. Mas tristeza não tem fim.
É insuportável ler nos jornais que um avô desesperado implora que no atestado de óbito conste o nome da neta assassinada e não apenas "uma criança carbonizada". Seu nome era Vitória e foi queimada viva no atentado contra um ônibus que poderia ser o de qualquer um de nós.
Essa criança tinha nome, existia, e foi reduzida a cinzas. Não pode cair no anonimato. Simbolizaria os milhares de pessoas que a violência matou e também se tornaram anônimos, porque esquecidos, assassinatos impunes. O vale de lágrimas tem que acabar.
Mas como, se a descrença se espalha e convence a tantos de que é melhor nem sequer votar nas eleições do ano que vem? Talvez não faltem razões para isso: a ojeriza aos políticos, a sensação de inutilidade, tudo tão compreensível e justificado. Mas essa opção não nos leva a nada, senão ao pesadelo de um governo escolhido na ausência dos indignados. E à desmoralização da democracia.
Faz parte da aspereza de ser adulto a admissão dos fracassos. Reconhecer que passou o tempo da denúncia e do lamento que não foram capazes de produzir mudanças. O que era ruim ficou pior.
A eleição para o governo do estado é o momento de escolher alguém que governe enfrentando com determinação a corrupção da polícia e a violência. Senão deslizaremos, todos, para a situação dos favelados que dependem da proteção dos bandidos contra outros bandidos. Pertenceremos à "jurisdição" por eles reivindicada, como é o caso na área que vai de São Conrado a Humaitá, onde já se ouve, na classe média, manifestações de alívio porque um chefe do tráfico promete poupá-la. Em outras "jurisdições" o crime é também polícia, tribunal e pelotão de fuzilamento. Está em curso a favelização da cidade inteira, espalha-se pelo asfalto a tragédia dos morros.
Uma eleição não esgota a democracia, mas afia a argumentação da sociedade, tornando-a mais arguta, mais pensante, quando em todo canto se discute para deliberar em quem ou no que votar. Esse processo se transforma em uma política nova, auto-regenerativa, que explode a moldura dos velhos partidos.
Passou o tempo em que se comprava barato o voto de um eleitor desatento, que intuía ser esse o seu único momento de algum poder, traduzível em vantagens, quanto mais não fosse um boné e uma camiseta. Relação perversa de pequenas e grandes corrupções, balé do corruptor e do vendido.
Com acesso a várias fontes de informação, exausta das promessas não-cumpridas, das mentiras que lhe são contadas, a população, e sobretudo a juventude, tem, hoje, uma exigência de verdade. Recusar-se a votar é uma maneira equivocada de dizer que não vai participar de uma farsa.
Os jovens que são acusados de se desinteressar da política estão, à sua maneira, mandando um recado: não querem ser enganados. Não manifestam nas ruas, em passeatas, mas se encontram em blogs e chats, formam suas opiniões.
Essa eleição terá que ser diferente. O grau de exasperação da população cria a oportunidade de fazermos dela um ato de resistência, que se prepara com antecedência, mobilizando pessoas competentes, criando um movimento para além dos partidos, apoiado em idéias realizáveis, pensadas e discutidas pela população, desde agora. Não há que voltar as costas à eleição mas, ao contrário, ir ao encontro dela, sem delegar à figura do candidato os poderes de salvação.
A eleição não precisa ser um jogo de cartas marcadas entre partidos, desgastados e sem credibilidade, que nos impingem programas que não cumprirão. Ela pode vir a ser uma experiência inédita de mobilização de energias.
Quem pode redimir o Rio somos nós, a população indignada, à condição de que entendamos que políticos somos todos, que política são os nossos gestos cotidianos, as alianças que tecemos entre amigos, entre moradores de um mesmo bairro, nos grupos que criarmos para pensar os problemas e de onde poderá emergir um querer coletivo, inegociável, que quem se apresentar para nos governar deverá encarnar.
É difícil? É. Mas com certeza Baden, Tom e Vinicius, nossos santos protetores, rogarão por nós e o milagre se fará.