sábado, janeiro 28, 2006

Roberto Pompeu de Toledo


Em torno da mesa,
com Homero ou Machado

A bonita história de jovens de escolas públicas que se reúnem em círculos de leitura

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro." Reunido em torno de uma mesa, um grupo de jovens lê o conto O Espelho, de Machado de Assis. Cada um lê um trecho e cede a vez para o jovem ao lado continuar. "Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja." A prosa de Machado vai circulando em volta da mesa. A qualquer momento, a leitura pode ser interrompida para um comentário. Que segunda alma seria essa de que fala o autor? No fim da leitura, trava-se uma discussão em que se tenta chegar a uma síntese das idéias suscitadas pelo texto.

Estamos numa das reuniões dos Círculos de Leitura, projeto desenvolvido pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, um centro de pesquisa e debates com sede em São Paulo (veja entrevista nas páginas amarelas desta edição). Quando se dedicava a pesquisas sobre a violência em Diadema, município da Grande São Paulo, o americano Norman Gall, diretor executivo do instituto, teve reforçada sua convicção de que nenhum trabalho de promoção social, nesse ou em qualquer outro município, chega a algum lugar sem passar de algum modo pela escola pública. Sua mulher, a psicanalista Catalina Pagés, espanhola da Catalunha e radicada no Brasil há quarenta anos, tinha experiência de coordenar leituras com os internos do Manicômio Judiciário. E se ela fizesse o mesmo com os alunos das escolas públicas? Nasceu assim uma bonita e bem-sucedida iniciativa, hoje no seu sétimo ano de existência.

Os Círculos de Leitura vêm ao socorro de um dos mais gritantes defeitos da educação brasileira: não ensinar a ler. Ou, mais precisamente: produzir alunos capazes de recitar as palavras contidas numa sentença, mas incapazes de captar-lhes o sentido. Hoje eles se multiplicam por 24 escolas dos bairros mais problemáticos de Diadema e dos vizinhos municípios do ABC paulista. Os jovens de 13 a 17 anos neles reunidos já foram apresentados a clássicos como a Odisséia, de Homero, O Banquete, de Platão, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e O Velho e o Mar, de Hemingway. Quando o ex-chefe de governo espanhol Felipe González esteve no Brasil, para um seminário no Instituto Fernand Braudel, reservou uma tarde para ler e debater, com um dos grupos, O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, ele falando espanhol, os meninos e meninas, português. Um grupo recente chegou à conclusão de que o final de Huckleberry Finn, de Mark Twain, era artificial e inconsistente com a evolução experimentada pelo personagem ao longo do livro. Impuseram-se então como tarefa criar desfechos diferentes.

Não se imagine que os círculos se constituam na base da boa vontade amadorística. Eles se estruturam em regras e critérios dos quais dependem sua eficácia e durabilidade. Uma tarefa delicada é manter com os professores e diretores das escolas um relacionamento que lhes evite a pecha de invasores da seara alheia. Sob a orientação de Catalina ou de sua parceira Patrícia Guedes trabalham os chamados "educadores", jovens em geral na faixa dos 20 anos que, muitas vezes formados nos próprios círculos, se encarregam de coordenar os diferentes grupos. Os educadores são auxiliados pelos "multiplicadores", escolhidos entre os próprios alunos e que entre outras tarefas têm a de escrever um "diário de bordo" sobre o andamento de seus grupos. Tanto educadores como multiplicadores são remunerados. Como regra, as reuniões se dão nas próprias escolas. Os alunos que mais se destacam são convidados a integrar grupos que se reúnem em São Paulo, coordenados muitas vezes pela própria Catalina.

Dado o sucesso que os círculos vêm experimentando, há uma demanda que pressiona por seu crescimento. Prefere-se no entanto ir devagar, para não comprometer a qualidade. Para arcar com os custos, conta-se com o apoio do Instituto Unibanco e da Fundação GE. Além da remuneração de educadores e multiplicadores, há despesas com livros e com o transporte dos jovens que se deslocam a São Paulo. Todos eles são pobres, muitos filhos de migrantes. Catalina enfrenta situações como a de uma mãe que queria levar o filho de volta para o Nordeste, o que significaria abandonar a escola e os Círculos de Leitura. Essa mãe foi chamada para conversar e convencida de que era um pecado truncar o desenvolvimento de um filho que mostrava talento e vontade de aprender. Os Círculos de Leitura têm descoberto, nos meios pobres, meninos e meninas de incomuns qualidades. Por um lado, isso traz o conforto de saber que existem meios de ajudar a evolução de jovens nascidos em ambientes ingratos. Por outro lado, joga luz sobre a tragédia brasileira, quando se dá conta de que os grupos de Catalina e de Norman Gall são apenas um pingo d'água no deserto de desperdício de talentos imposto pela pobreza e pela falta de oportunidades. Roberto Pompeu de Toledo
Em torno da mesa,
com Homero ou Machado

A bonita história de jovens de escolas públicas que se reúnem em círculos de leitura

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro." Reunido em torno de uma mesa, um grupo de jovens lê o conto O Espelho, de Machado de Assis. Cada um lê um trecho e cede a vez para o jovem ao lado continuar. "Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja." A prosa de Machado vai circulando em volta da mesa. A qualquer momento, a leitura pode ser interrompida para um comentário. Que segunda alma seria essa de que fala o autor? No fim da leitura, trava-se uma discussão em que se tenta chegar a uma síntese das idéias suscitadas pelo texto.

Estamos numa das reuniões dos Círculos de Leitura, projeto desenvolvido pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, um centro de pesquisa e debates com sede em São Paulo (veja entrevista nas páginas amarelas desta edição). Quando se dedicava a pesquisas sobre a violência em Diadema, município da Grande São Paulo, o americano Norman Gall, diretor executivo do instituto, teve reforçada sua convicção de que nenhum trabalho de promoção social, nesse ou em qualquer outro município, chega a algum lugar sem passar de algum modo pela escola pública. Sua mulher, a psicanalista Catalina Pagés, espanhola da Catalunha e radicada no Brasil há quarenta anos, tinha experiência de coordenar leituras com os internos do Manicômio Judiciário. E se ela fizesse o mesmo com os alunos das escolas públicas? Nasceu assim uma bonita e bem-sucedida iniciativa, hoje no seu sétimo ano de existência.

Os Círculos de Leitura vêm ao socorro de um dos mais gritantes defeitos da educação brasileira: não ensinar a ler. Ou, mais precisamente: produzir alunos capazes de recitar as palavras contidas numa sentença, mas incapazes de captar-lhes o sentido. Hoje eles se multiplicam por 24 escolas dos bairros mais problemáticos de Diadema e dos vizinhos municípios do ABC paulista. Os jovens de 13 a 17 anos neles reunidos já foram apresentados a clássicos como a Odisséia, de Homero, O Banquete, de Platão, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e O Velho e o Mar, de Hemingway. Quando o ex-chefe de governo espanhol Felipe González esteve no Brasil, para um seminário no Instituto Fernand Braudel, reservou uma tarde para ler e debater, com um dos grupos, O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, ele falando espanhol, os meninos e meninas, português. Um grupo recente chegou à conclusão de que o final de Huckleberry Finn, de Mark Twain, era artificial e inconsistente com a evolução experimentada pelo personagem ao longo do livro. Impuseram-se então como tarefa criar desfechos diferentes.

Não se imagine que os círculos se constituam na base da boa vontade amadorística. Eles se estruturam em regras e critérios dos quais dependem sua eficácia e durabilidade. Uma tarefa delicada é manter com os professores e diretores das escolas um relacionamento que lhes evite a pecha de invasores da seara alheia. Sob a orientação de Catalina ou de sua parceira Patrícia Guedes trabalham os chamados "educadores", jovens em geral na faixa dos 20 anos que, muitas vezes formados nos próprios círculos, se encarregam de coordenar os diferentes grupos. Os educadores são auxiliados pelos "multiplicadores", escolhidos entre os próprios alunos e que entre outras tarefas têm a de escrever um "diário de bordo" sobre o andamento de seus grupos. Tanto educadores como multiplicadores são remunerados. Como regra, as reuniões se dão nas próprias escolas. Os alunos que mais se destacam são convidados a integrar grupos que se reúnem em São Paulo, coordenados muitas vezes pela própria Catalina.

Dado o sucesso que os círculos vêm experimentando, há uma demanda que pressiona por seu crescimento. Prefere-se no entanto ir devagar, para não comprometer a qualidade. Para arcar com os custos, conta-se com o apoio do Instituto Unibanco e da Fundação GE. Além da remuneração de educadores e multiplicadores, há despesas com livros e com o transporte dos jovens que se deslocam a São Paulo. Todos eles são pobres, muitos filhos de migrantes. Catalina enfrenta situações como a de uma mãe que queria levar o filho de volta para o Nordeste, o que significaria abandonar a escola e os Círculos de Leitura. Essa mãe foi chamada para conversar e convencida de que era um pecado truncar o desenvolvimento de um filho que mostrava talento e vontade de aprender. Os Círculos de Leitura têm descoberto, nos meios pobres, meninos e meninas de incomuns qualidades. Por um lado, isso traz o conforto de saber que existem meios de ajudar a evolução de jovens nascidos em ambientes ingratos. Por outro lado, joga luz sobre a tragédia brasileira, quando se dá conta de que os grupos de Catalina e de Norman Gall são apenas um pingo d'água no deserto de desperdício de talentos imposto pela pobreza e pela falta de oportunidades.